A leitura conceitual em “Destrua este diário”
Lançado em 2013, pela editora Intrínseca, o livro Destrua este diário, escrito por Keri Smith, possibilita ao leitor uma experiência única, de desapego a certas tradições, de liberdade e de coautoria. Exercendo outra função, além da leitura trivial, o leitor é convidado a vivenciar as aventuras do livro impresso na prática. Claramente, a obra de Smith segue os passos de movimentos emblemáticos nos quesitos participação e interatividade arte/público, como o Neoconcretismo, que previa a atuação do receptor como complemento ou ativação da obra de arte, e o Poema Processo, período no qual a prática excedia os limites da arte, para alcançar o aspecto social em sua plenitude.
O Neoconcretismo, tendência modernista cujo manifesto oficial foi publicado em 1959, por Ferreira Gullar, Lygia Clark, Lygia Pape, entre outros, previa a interferência física do espectador junto à obra de arte. Sendo assim, nas palavras do crítico Luiz Osório, o público “é convidado a interagir com as obras, a ter uma relação que não é meramente contemplativa e visual, mas uma relação em que o corpo se expressa nesta experiência da obra, interagindo com essa experiência” (DW, 2021). Posteriormente, no período de 1967 a 1972, o Poema Processo, movimento liderado por Wlademir Dias-Pino, acentuava a ideia da arte como mote contínuo (work in progress), em permanente processo, como já anunciava o nome dessa vanguarda brasileira (MUSEU DE ARTE ABRAHAM PALATNIK, 2021). Nas palavras de Dias-Pino, a arte filiada a essa tendência poderia ser assim descrita: “[…] a cada nova experiência inaugura processos informacionais” (MUSEU DE ARTE ABRAHAM PALATNIK, 2021). Coerente com esse princípio, o Poema Processo exigia mais do que um simples leitor. O público deveria se comportar como autor ou cocriador, pois, segundo Maiakóvski: “Tais livros são endereçados a uns poucos, mas, não consumidores, e sim produtores” (MUSEU DE ARTE ABRAHAM PALATNIK, 2021, grifo nosso). A fim de exemplificar esse projeto audacioso em termos de interatividade, convém retomar a obra intitulada “Pão poema processo”, que, de fato, resumia-se a um imenso sanduíche, de “2 metros”, que, em 1970, foi “comido por cinco mil pessoas na Feira de Arte de Recife” (MUSEU DE ARTE ABRAHAM PALATNIK, 2021).
Coroando essa trajetória iniciada durante o Modernismo, Keri Smith inicia sua obra com uma constatação: “Criar é esculhambar” (SMITH, 2013, s. p.). Em outra parte do livro, há menção à “DESTRUIÇÃO CRIATIVA” (SMITH, 2013, s. p., grifo no original). Somando esses dois elementos, ressalta-se a atividade do leitor, que passa a atuar muito próximo do autor, entidade antes inalcançável, porque era salvaguardada pela aura do livro (BENJAMIN, 1994). Apesar de hoje, com a literatura digital, já termos ido muito além da “era da reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN, 1994, p. 165), é inegável o fato de que o livro impresso ainda é considerado pela maioria dos leitores como um objeto sagrado, característica que enaltece a si mesmo e ao autor, com quem o livro compartilha essa condição realmente especial. Entretanto, o poder da multiplicação foi decisivo, no processo que Walter Benjamin descreve como “Destruição da aura” (BENJAMIN, 1994, p. 169, grifo no original). Conforme o teórico, a aura é um traço “singular”, composto de “elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN, 1994, p. 170). Então, quando esse objeto tão especial torna-se muito próximo, podendo pertencer a qualquer pessoa, a qualquer tempo e lugar, em diferentes momentos do dia, a aura se perde. O livro torna-se, enfim, uma coisa comum.
Contrariando as expectativas do leitor, Keri Smith aciona, no leitor, o modo destruição, com a expressa finalidade de instituir um novo status para o livro, que passa a ser tratado como um instrumento, qualquer, do cotidiano, e que, como tal, é vulnerável às intempéries, podendo ser perdido, roubado, danificado… Por esse motivo, nas “Instruções” de Destrua este diário, podemos ler as seguintes sugestões: “1. Leve este livro para todos os lugares.” (SMITH, 2013, s. p.); e “5. Experimente. (contrarie seu bom senso.)” (SMITH, 2013, s. p.). Como se vê, o primeiro item desinveste o livro de sua aura habitual, transformando-o em objeto corriqueiro e absolutamente comum, como dezenas de outros que utilizamos em nosso dia a dia. Além disso, no tópico 5, o leitor se depara com um convite à “experimentação”, o que implica “contrariar o bom senso” e, claro, a tradição. Diante disso, quando voltamos às primeiras páginas do diário, e lemos: “Dedicado a perfeccionistas do mundo inteiro” (SMITH, 2013, s. p.), é impossível não perceber a ironia, afinal os fatos de orientar o leitor a deixar páginas em branco e de incentivar o leitor a fazer seu próprio sistema de paginação para a obra são as partes mais inofensivas e mais bem comportadas do inseparável diário. Porém, temos uma visão mais abrangente do projeto estético e desalienante do livro de Smith, quando observamos esta página, que reúne uma série de materiais que devem ser usados, durante a leitura (Fig. 1):
Portanto, o livro de Keri Smith é a experiência máxima de uma leitura ativa (no sentido amplo e na prática) e libertadora em muitos sentidos. Para ler, o leitor tem que usar, gastar, sujar e pisar o livro.
Mas, afinal, que livro é esse? Além de ser um diário, o que reforça o aspecto da pessoalidade e reitera o fato de que o leitor deve levar o livro “para todos os lugares” (SMITH, 2013, s. p.), a obra de Keri Smith cede a autoria ao leitor. O livro pertence à pessoa que o lê — que o experimenta e que o vivencia, em sua plenitude — e a prova disso aparece logo nas primeiras páginas, quando o nome do leitor deve ser registrado seis vezes, de diferentes formas (Fig. 2):
Ao preencher todos os dados, o leitor torna-se o único dono do diário, superando até mesmo a autoridade da própria autora. Porém, esse era o plano de Keri Smith, desde o início. Smith, além de ilustradora, dedica-se à arte conceitual, o que explica muita coisa do que vemos, lemos e fazemos em Destrua este diário. A arte conceitual reage naturalmente à tradição, criando perspectivas e debatendo ideias, as quais, aliás, são muito mais importantes do que o objeto em si. Dessa forma, o que importa não é o livro, mas o que lemos e o que conhecemos por meio daquela leitura. Nesse percurso, a leitura é considerada uma experiência única, que deve ser compartilhada e difundida. Por isso, Keri Smith transforma o leitor em sujeito, enquanto o livro estiver em seu poder. Caso o diário seja extraviado, a obra passará a ser de outra pessoa, ao menos por breve período de tempo (rever Fig. 2): “*ATENÇÃO; QUEM ENCONTRAR ESTE LIVRO DEVE ABRI-LO NUMA PÁGINA QUALQUER, SEGUIR AS INSTRUÇÕES E SÓ DEPOIS DEVOLVÊ-LO” (SMITH, 2013, s. p., grifo no original). Se isso ocorrer, mais uma tradição será rompida: o diário, de teor confessional, não apenas virá a público como também será usado e experimentado por uma pessoa estranha. Não importa! O que realmente importa é que ninguém deve perder a chance de viver mais um livro.
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196.
DW. Neoconcretismo brasileiro é destaque de exposição em Berlim. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/neoconcretismo-brasileiro-%C3%A9-destaque-de-exposi%C3%A7%C3%A3o-em-berlim/a-5972141>. Acesso em: 13 abr. 2021.
MUSEU DE ARTE ABRAHAM PALATNIK. Poema/Processo. Disponível em:<http://www.natalnet.br/palatnik/JotaMedeiros/poeticas_visuais/poemarocesso/poemaprocesso2.html>. Acesso em: 13 abr. 2021.
SMITH, K. Destrua este diário. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.
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