Representações da glocalidade no cinema brasileiro: Central do Brasil

Verônica Daniel Kobs

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Central do Brasil, um marco no cinema nacional, promoveu a fusão entre duas paisagens: a interiorana e a urbana, bem como inverteu o sentido de busca que aparecia em filmes do Cinema Novo e em outras produções que tinham o Nordeste como pano de fundo. Não só Deus e o diabo na terra do sol, mas também Morte e vida severina e, posteriormente, Abril despedaçado, trabalharam com a busca pelo mar como metáfora para a vida ambicionada pelos protagonistas. Alcançando o mar, eles estariam livres e com a certeza de ter novas e melhores perspectivas de vida. Central do Brasil, porém, mesmo também fazendo uso da busca como metáfora, inverte o percurso e lança Dora e Josué em um caminho árduo em direção ao sertão, ao interior, o que representa uma viagem também ao interior deles mesmos como pessoas (Fig. 1). Sobretudo Dora passa por uma transformação atroz, mostrando seu afeto por Josué e até se redescobrindo como mulher.

Central do Brasil
Figura 1: Paisagem interiorana em Central do Brasil. Imagem disponível em: https://www.revistabula.com/43447-central-do-brasil-de-walter-sales-uma-bula-para-o-brasil/

O filme de Walter Salles reflete o hibridismo em vários de seus aspectos. Primeiramente, pela estética do diretor, acusado frequentemente de dar um bom acabamento excessivo às suas produções. Isso provoca, para boa parte da crítica, uma diluição dos problemas da realidade brasileira que foram selecionados para figurarem no filme. Ivana Bentes chama esse procedimento de cosmética da fome, por oposição à estética da fome, de Glauber Rocha. A relação entre a técnica importada de Salles e os temas inerentes ao país exemplifica, de certa forma, o hibridismo. O traço mais forte, porém, é a junção do regional com o global. No filme, isso é representado pelo deslocamento dos personagens da metrópole para o sertão (Fig. 2). Por essa razão, Central do Brasil recebeu rótulos como nordestern, road movie e, ainda, árido movie (note-se que a composição dos termos também reflete o hibridismo) e foi relacionado estreitamente ao movimento Mangue Beat, surgido em Pernambuco, em 1990, sob o comando de Chico Science, que juntava ao rock e ao hip-hop aspectos folclóricos do Nordeste.

Representações da glocalidade no cinema brasileiro: Central do Brasil 1
Figura 2: Dora e Josué no ônibus Imagem disponível em: https://rollingstone.uol.com.br/cinema/central-do-brasil-quase-rendeu-fernanda-montenegro-oscar-de-melhor-atriz-momento-inesperado/

Canclíni enxerga o hibridismo em todos os movimentos modernistas, pelo fato de esses romperem com a tradição literária, a partir da instituição de uma mistura de elementos populares àqueles mais elitizados, promovendo um tipo de sincretismo cultural: “Os modernismos beberam em fontes duplas e antagônicas: de um lado, a informação internacional, sobretudo francesa; de outro, um nativismo que se evidenciaria na inspiração e busca de nossas raízes […].” (CANCLINI, 2003, p. 116). O Mangue Beat, com influências modernistas assumidas, sobretudo do Manifesto Antropofágico, caracteriza-se pela mesma mistura:

Inspirado no manifesto “caranguejos com cérebro”, o interesse central do movimento mangue beat era a fusão de ritmos […]; seria uma percepção da diversidade cultural existente. O movimento aponta para o fato de que já não se pode mais pensar nas diferentes formas de produção cultural — eruditas, populares e de massa, de maneira excludente. […]. Isso tornou o estilo do movimento como o Antropofágico […]. (LEAL, 2006, grifo no original)

Na parte que se passa na cidade grande, Central do Brasil mostra exemplos de violência diária e denuncia a venda de crianças, o tráfico de órgãos, o charlatanismo e a justiça paralela, caso da cena em que o segurança, personagem de Otávio Augusto, mata um garoto, por ele ter roubado um produto, na estação. Fora isso, há espaço para a invasão sofrida pelas grandes cidades, que recebem, diariamente, pessoas, até famílias inteiras, de outras regiões, porque acreditam poder encontrar, nos grandes centros, melhores oportunidades e condições de vida, mas que se deparam, na maioria das vezes, com mais dificuldades do que antes. É importante destacar que, mesmo em se tratando da vida em uma cidade grande, Central do Brasil opta pela periferia, pelo subúrbio, na tentativa de dar ênfase aos excluídos.

No entanto, praticamente toda a crítica internacional cobrou de Walter Salles maior atrelamento ao cinema idealizado por Glauber Rocha. Além disso, viu como negativas a recorrência de clichês e a tendência ao melodrama. Uma das poucas críticas positivas foi a norte-americana, que atribuiu 4,81 pontos ao filme, quando esse, no máximo, poderia atingir 5,00 pontos. Os mais implacáveis foram os críticos portugueses, que, inclusive, evidenciaram forte parentesco entre o filme e as telenovelas brasileiras, dizendo que até os atores são de televisão.

Tendo em vista que o mote do filme é a religiosidade ligada à transformação de Dora e Josué, a partir do momento em que os dois partem para o interior do país, os elementos religiosos tornam-se extremamente frequentes (Fig. 3). Avultam-se também os planos abertos, para a valorização da paisagem agreste. À medida que Josué e Dora se aproximam de seus destinos (a cidade natal do garoto), o aspecto religioso evolui. O ápice acontece quando eles chegam a um povoado em que está acontecendo um tipo de romaria, com quermesse, cultos a santos e rituais, como oferendas de velas e ladainhas, para pedir algo ou agradecer pela graça recebida.

Representações da glocalidade no cinema brasileiro: Central do Brasil 2
Figura 3: Exemplo do aspecto religioso no filme
Imagem disponível em: http://43.mostra.org/br/filme/9518-CENTRAL-DO-BRASIL

Na quermesse, Josué tem a ideia de fazer Dora valer-se de seu ofício de “escrevedora” de cartas e anuncia a escrita de mensagens a Padre Cícero. O fato de a praça aglutinar todas essas manifestações religiosas reforça o aspecto popular do filme, já que são apresentados os costumes de um povo simples, o comércio, com destaque ao artesanato, a medicina natural, etc., tudo potencialmente popular. Simbolicamente, a religiosidade se faz presente na busca de Josué pelo pai, Jesus, e em determinadas inversões, não apenas da imagem de Pietà, na cena antológica em que o menino ampara Dora, sobre uma pedra, mas também na profissão do pai, já que, no texto bíblico, não era Jesus o marceneiro, mas José.

Na busca pelo pai, está implícito o sujeito descentrado. Também psicanaliticamente o pai representa o centro. Em Central do Brasil, isso é intensificado pelo fato de o nome do pai ser Jesus, o que representa o alcance de um estado de plenitude espiritual, depois da sintonia com o pai. Relacionado à simbologia do pai como centro ou equilíbrio está o nome da cidade em que Jesus mora − Bom Jesus do Norte −, já que Norte simboliza a retidão, uma direção a ser seguida, colocando no caminho certo aquele que está perdido. Em outras palavras, pode-se afirmar que Walter Salles, ao mesmo tempo em que tenta firmar a diversidade como um dos traços da identidade nacional, destaca também o conflito de identidade de seus personagens. Dessa forma, a identidade é um conceito explorado duplamente: interna e externamente; individual e coletivamente. A busca de Josué, sobretudo, depende de sua volta às origens, para encontrar o pai, pois, como filho, é parte integrante dele.

No que se refere à identidade nacional, o equilíbrio alcançado entre metrópole e interior é apontado pela crítica como um dos resquícios ideológicos de Gilberto Freyre, que, em seu Manifesto Regionalista, de 1926, atentava para a diversidade da cultura nacional e para o risco do reducionismo, ao se tentar a unidade. Citando um trecho do manifesto e apontando suas afinidades com o filme Central do Brasil, Jayme Canashiro Augusto menciona: “‘[…] o único modo de ser nacional no Brasil é ser, primeiro, regional’ (algo bem assimilado por Walter Salles em seus filmes […])” (AUGUSTO, 2006). Em outra passagem do mesmo artigo, o autor sintetiza: “Este filme é um encontro de vários Brasis: o do Nordeste que vai ao Sul-Maravilha em busca de sobrevivência, e o do Sul-Maravilha que vai ao Nordeste em busca de si mesmo. É o resgate na esperança do país: os personagens perdidos se tornam cúmplices no caminho para o interior do Brasil” (AUGUSTO, 2006). Tal afirmação estabelece o Nordeste como berço das tradições mais populares, a começar pela religiosidade, mais intensa nessa região.

Dessa forma, se Josué busca sua própria origem, é como se também a cidade grande fosse fruto da cidade interiorana e necessitasse recuperar suas raízes, para reaver alguns costumes que se perderam, em meio à homogeneização cultural que afeta e transforma os grandes centros. O Nordeste, ainda mais quando se trata de uma cidade do interior, permite essa revitalização, porque ainda não foi maculado ou corrompido, tanto quanto outras regiões do Brasil, pelos costumes que vêm de fora e, dessa forma, é dotado de maior originalidade.  Isso, então, permite à metrópole resgatar hábitos esquecidos já há algum tempo, para que possa acentuar a diferença e assim reagir à globalização.

 

REFERÊNCIAS

AUGUSTO, J. C. A questão da identidade nacional nos primeiros filmes de Walter Salles Jr. Disponível em: <http://www.facasper.com.br/jo/download/identidade_nacional_nos_filmes_de_walter_salles.doc>. Acesso em: 08 abr. 2006.

CANCLINI, N. G. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2003.

CENTRAL DO BRASIL. Direção de Walter Salles. Brasil: RioFilme, VideoFilmes e Mact Productions; Europa Filmes, 1998. 1 DVD (113 min); son.

LEAL, R. et al. Chico science. Disponível em: <http://www.focca.com.br/chicosci/

chico%201%20ª%20CC.htm>. Acesso em: 23 mai. 2006.

Texto originalmente publicado na revista Travessias Interativas n. 14 (jul-dez/2017), promovida pela Universidade Federal de Sergipe.

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