Representações da glocalidade no cinema brasileiro: O auto da Compadecida

Em 2000, O auto da compadecida surgiu no cinema (Fig. 1) como representação popular e crítica da realidade, centrada numa cidade pequena, do interior nordestino, cuja hierarquia era resumida em tipos, os quais, por sua vez, representavam a influência do coronelismo, ainda forte nas regiões Norte e Nordeste, da Igreja (ressalte-se o fato de a região representada no livro e no filme ser uma das mais crentes e religiosas do Brasil) e a relação entre explorados e exploradores. O filme, que adapta a peça homônima de Ariano Suassuna (Fig. 1), reacende o debate regionalista, o qual, segundo Stuart Hall, constitui um dos modos de continuar valorizando a cultura autóctone, para que ela não se perca em meio ao predomínio do global. Castells, na mesma linha de Hall, considera o nacionalismo contemporâneo “mais reativo do que ativo” (CASTELLS, 1999, p. 47), justamente pelo fato de ele tentar demarcar novamente as fronteiras diluídas, hoje, pelo multiculturalismo.

Figura 1: Capas do DVD e do livro (O) Auto da Compadecida. Imagens disponíveis em: https://arteeartistas.com.br/o-auto-da-compadecida/ e https://www.amazon.com.br/Auto-Compadecida-Ariano-Suassuna/dp/8520937829

O longa dirigido por Guel Arraes retoma a tendência regionalista, que prevaleceu, sobretudo na literatura, desde a época de 1930 até o início da década de 1950, quando ganhavam destaque os trabalhos de João Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. O romance de 30, principalmente, filiava-se à ideologia do Manifesto Regionalista. É justamente essa filosofia que reaparece, em 2000, na versão cinematográfica do texto de Suassuna. As afinidades entre o manifesto de Gilberto Freyre e O auto da compadecida aparecem já na ideia de firmar a unidade através da diversidade, considerada uma das principais características brasileiras, pois O auto da compadecida, ao mesmo tempo em que situa geográfica e espacialmente as críticas e os conflitos presentes no texto literário e no filme, consequentemente, obtém um alcance universal, fazendo com que o recorte que se faz de determinada sociedade, dentre tantas, represente todas as demais, unificando-as, de certa forma. Um aspecto, talvez o principal, responsável por particularizar a região é a fala, pois privilegiam-se a oralidade e o registro dialetal.

Quanto à escolha do Nordeste, Freyre, em seu manifesto, justifica a importância dessa região, da seguinte forma:

[…] o Brasil é isto: combinação, fusão, mistura. E o Nordeste, talvez principal bacia em que se vêm processando essas combinações, essa fusão, essa mistura de sangues e valores que ainda fervem: portugueses, indígenas, espanhóis, franceses, africanos, holandeses, judeus, ingleses, alemães, italianos. (FREYRE, 2006, p. 30)

Essa ideia afasta o preconceito existente em relação ao regionalismo, que considera tal tendência separatista e bairrista. Aliás, o autor do manifesto corrige esse equívoco, no início de seu texto, como ação preventiva, e conclui com trechos como o que foi transcrito acima, justificando a escolha do Nordeste como espaço que sintetiza o sincretismo cultural do Brasil.

Renato Ortiz, ao comentar o posicionamento de Arthur Cezar Ferreira Reis sobre a Amazônia, compara-o ao autor do Manifesto Regionalista, mencionando que Reis “retoma os argumentos de Gilberto Freyre sobre o Nordeste” (ORTIZ, 1994, p. 93). Adiante, comentando a questão da unidade e da diversidade, Ortiz cita:

A região é uma das partes desta diversidade que define a unidade nacional. O elemento da mestiçagem contém justamente os traços que naturalmente definem a identidade brasileira: unidade na diversidade. Esta fórmula ideológica condensa duas dimensões: a variedade das culturas e a unidade do nacional. (ORTIZ, 1994, p. 93)

Em oura obra, intitulada A moderna tradição brasileira, Renato Ortiz opõe as metrópoles, essencialmente urbanas, ao interior, espaço em que sobrevivem as tradições:

É sugestivo o contraste que se constrói entre São Paulo e o Nordeste. São Paulo é “locomotiva”, “cidade”, e o paulista é “burguês”, “industrial”, tem gosto pelo trabalho e pelas realizações técnicas e econômicas. O Nordeste é “terra”, “campo”, seus habitantes são telúricos e tradicionais e por isso representam o tipo brasileiro por excelência. (ORTIZ, 1999, pp. 36-37)

Esse “tipo brasileiro” é resgatado tanto na segunda parte de Central do Brasil quanto em O auto da compadecida, já que as cidades grandes, pelo contato intenso que mantêm com as metrópoles estrangeiras, importando seus costumes e tradições, não perpetuam mais a brasilidade, sendo necessário, então, buscar esse traço em comunidades que estão à margem da industrialização intensa e que, portanto, mantêm hábitos originais, quase primitivos. Em outras palavras, os adjetivos “impuro” e “puro” servem para qualificar, respectivamente, a cultura dos grandes centros e a das cidades interioranas.

O objetivo do regionalismo, tanto na literatura como no cinema, já é conhecido. Assim como Stuart Hall pontua hoje, Freyre já mencionava, em seu manifesto, em 1926, que o regionalismo buscava reagir à invasão estrangeira. Pode-se relacionar o resgate do regionalismo, em pleno ano 2000, auge da globalização, ao que postula Bauman, em sua obra Modernidade líquida: “Compartilhar intimidades, como Richard Sennett insiste, tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta de ‘construção da comunidade’.” (BAUMAN, 2001, pp. 46-47). A partir desse trecho, entende-se a razão de retomar uma obra escrita já há algum tempo e de caráter fortemente regional. O regional pode ser considerado o ponto de partida para o nacional. É através da identificação entre pessoas da mesma região que se estabelece a noção de comunidade e conjunto. Logo, torna-se especialmente significativo o fato de uma peça como O auto da compadecida ter sido adaptada para o cinema no ponto alto da globalização, quando, ainda conforme Bauman, não só as comunidades estão desaparecendo, mas também estão se diluindo instituições que antes eram sólidas e permanentes, como a família, a classe, o casamento, entre outras, denominadas por Ulrich Beck “categorias zumbi” (Cf. BAUMAN, 2001).

Em Recortes, Antônio Candido, em um dos textos críticos que compõem a coletânea, menciona que o nacionalismo está ultrapassado. Porém, deve-se ter em mente que o livro, embora tenha sido lançado em 1993, reúne textos escritos também nas décadas de 1970 e 1980, época em que, de fato, o nacionalismo não era uma preocupação urgente. No entanto, do final da década de 1990 para cá, com o crescimento do fenômeno chamado globalização, o nacionalismo volta à tona, para tentar evitar a diluição de valores genuinamente brasileiros. Esse resgate, entretanto, não afetou apenas a cultura brasileira, mas muitas outras. Por esse prisma, pode-se considerar O auto das compadecida mais extremista que Central do Brasil, pelo fato de a obra de Suassuna ter privilegiado um cenário regional por excelência. No entanto, o debate de temas universais constitui, no texto literário e no filme, um ponto de equilíbrio, que ameniza o que, a princípio, parece radical.

Ariano Suassuna, em entrevista concedida a Cláudio Vasconcelos, analisa o impacto contraditório da cultura de massa americana sobre a cultura brasileira popular. Ao responder se teme pelo fim da literatura de cordel, o autor afirma:

Eu temo, não somente pela literatura de cordel e a literatura popular, mas por toda a cultura brasileira, que se encontra ameaçada pela invasão da cultura de massa americana. Agora, a cultura popular está mais, porque quem a produz são pobres e, portanto, o massacre é maior. Mas, por outro lado, o fato de eles serem pobres e viverem excluídos do ponto de vista sociopolítico é um desastre. Mas, do ponto de vista cultural, às vezes e até sem querer, são eles que criam uma literatura brasileira, porque são menos expostos. (VASCONCELOS, 2006)

Essa afirmação reforça a concepção de Renato Ortiz, que também compreende o Nordeste como berço da tradição brasileira. Em O auto da compadecida, a simplicidade do espaço e da vida organizada na cidade do interior amplia a discussão de temas fundamentais, como a desigualdade social, por exemplo, e a necessidade de o povo sobreviver com muito pouco, passando a enfrentar condições tão adversas, como a seca, a fome e a exploração dos mais ricos. Mesmo por meio da comédia, texto literário e filme dão o recado, mostrando a corrupção do caráter e do código moral pelas altas instâncias do poder, representadas, em ambas as obras, pelas figuras do coronel, do bispo e do padre.

Outro elemento que acompanha o nacionalismo, sobretudo quando esse parte de uma representação regionalista, é o tom popular. Essa característica se faz presente, na obra de Suassuna, desde as influências (de Plauto e Molière ao mamulengo e às chanchadas) até a linguagem, na qual se percebe a ênfase ao coloquial, elemento em que a literatura de cordel investe bastante. Somem-se a esses traços populares também a própria comédia e a estrutura de auto, já que esse tipo de peça compreende uma construção simples, alegoria, tom cômico, linguagem ingênua e um final moralizante. Não por coincidência, todos esses quesitos são encontrados na obra de Ariano Suassuna. Da mesma forma que o auto sintetiza várias características populares, a parte final da obra, do julgamento de João Grilo e seus conhecidos, também o faz. Por essa razão, essa sequência pode ser considerada antológica, sempre referenciada (Fig. 2).

Figura 2: Cena do julgamento de João Grilo
Imagem disponível em: http://s01.video.glbimg.com/x720/2630272.jpg

A cena do julgamento investe na oposição do bem contra o mal, representados, alegoricamente, por Jesus e Maria, de um lado, e pelo Diabo, do outro. Além disso, condensa, de certo modo, a religiosidade, que permeia toda a peça. Novamente, como aconteceu em Central do Brasil, a religiosidade é considerada aspecto essencial ao popular. Em meio à alegoria, recurso bastante recorrente no folclore, e à religiosidade, aparece a crítica social, que, no filme, muda o tom, de modo a conferir quase que um teor de documentário à sequência de cenas em preto e branco, que mostra a migração dos nordestinos, quando fogem da seca, e suas precárias condições de vida.

Fazendo jus à opção pelo regionalismo, mesmo debatendo questões universais, O auto da compadecida retrata, com detalhes, o espaço físico, o figurino e costumes específicos, salvaguardados do estrangeirismo (Fig. 3).

Figura 3: Figurinos e cenários do filme
Imagem disponível em: https://miro.medium.com/max/1400/1*aScHPeERNFa762BroTl0qQ.jpeg

Como exemplos, podem ser citadas: a importância dada pelo coronel ao sobrenome, à titulação e às posses de Chicó, quando esse se apresenta como pretendente à mão de Rosinha; a praça, local onde, inclusive, está situada a igreja, espécie de centro da pequena cidade; as casas pequenas, coloridas e com as janelas caiadas; a caracterização da venda e do bar, à moda dos populares comércios de secos e molhados; e a tradição das quermesses.

 

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

CASTELLS, M. O poder da identidade.  São Paulo: Paz e Terra, 1999.

FEYRE, G. Manifesto regionalista de 1926. Recife: Região, 1952.

O AUTO DA COMPADECIDA. Direção de Guel Arraes. Brasil: Globo Filmes e Lereby Productions; Columbia Pictures do Brasil, 2000. 1 DVD (95 min); son.

ORTIZ, R. Cultura brasileira & identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.

_____. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1999.

SUASSUNA, A. Auto da Compadecida. 39ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

VASCONCELOS, C. Autor de Auto da Compadecida fala sobre cultura popular. Disponível em: http://www.pi.gov.br/entrevista.php?id=8784. Acesso em: 5 mai. 2006.

 

 

Texto originalmente publicado na revista Travessias Interativas n. 14 (jul-dez/2017), promovida pela Universidade Federal de Sergipe.

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