A criatura flamejante

A primeira vez, uma monstruosa figura ardente cruzou o quintal, atravessou as paredes e parou no quarto em que minha mãe dormia. Ela acordou, viu a aparição, tentou gritar e não conseguiu. Seus movimentos também ficaram comprometidos. A única reação possível era mental: orou o credo ardorosamente. A parede ficou carbonizada.

Em um instante anterior à aparição, meu tio portador de enfermidade mental descobriu o homem sentado junto ao tronco da mangueira, sem nenhuma labareda ao redor, sem aspecto demoníaco algum. O único traço curioso era a brancura do sujeito, parecia um albino vestido com roupas pretas formais. Ele se levantou, não sem saudá-lo e se incendiou.

A forma incendiada caminhou por um corredor com duas janelas pertencentes ao vizinho. Ele estranhou a claridade, principalmente pelo horário. Acordou sua mulher e disse: – A casa ao lado está em chamas! Ela se colocou de pé, correu para o banheiro, abriu a torneira, encheu os baldes e os passaria para o marido se a janela, agora aberta, não revelasse a figura paralisante.


A criatura flamejante

O meu tio soltou gritos perturbadores. Corria de um lado a outro da rua. As casas acordaram devagar irritadas pelo alarde, apesar da compaixão das pessoas. Notaram um brilho intenso surgido no quintal, semelhante a uma fogueira com pernas e concluíram que ele ateou fogo na casa com toda sua família dentro. Ele foi amarrado, ligaram para os bombeiros e correram a esticar mangueiras de água.

Minha mãe recuperou sua voz e seus movimentos. Ouviu as vozes cercando a casa e se levantou rapidamente. Abriu a porta, viu ainda a forma incendiada cercada pelos vizinhos perplexos pelas chamas inextinguíveis apesar dos jatos d’ água lançados contra a criatura. Um zumbido estridente se espalhou: cachorros enlouquecidos, as pessoas ensurdecidas e as línguas de fogo cessaram.

O retorno à forma humana despertou desconfiança. A brancura, as roupas formais negras, a altura assemelhavam-no a um jovem mórmon, sorria para todos com os dentes pontiagudos. O zumbido provocou o sangramento dos tímpanos, contorções dolorosas e estares. O ser sobrenatural refez os próprios passos, acenou com a cabeça para meu tio – as cordas caíram por terra -, abraçou a mangueira e explodiu: as faíscas pareciam vaga-lumes em busca do abrigo das folhas.


Leia o texto de estreia da coluna Extravios, de Mariel Reis: Sopra onde quer

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