Poesia Ecológica e Resistência

Nos haicais de Sigrid Renaux, plantas e pássaros assumem o protagonismo, para inverter a pirâmide que costuma consolidar a supremacia do homem sobre os demais seres. Isso, por sua vez, relaciona-se ao conceito de que “[…] o ambiente, muitas vezes imaginado como espaço inerte, vazio ou como recurso para uso humano, é, de fato, um mundo de seres plenos, com suas próprias necessidades, reivindicações e ações” (ALAIMO, 2008, p. 238, tradução nossa). Evando Nascimento corrobora essa concepção, com esta afirmativa categórica: “Não existe nada propriamente inerte” (MANCUSO; NASCIMENTO; AGUSTONI, 2021).

Entretanto, para serem capazes de perceber a importância da integração e da vida das plantas, as pessoas precisam ser motivadas à convivência. Quanto mais houver consciência de preservação, melhor será o resultado. No caso da literatura de Sigrid Renaux, a relação entre arte e natureza foi incentivada já na escola: 

Mesmo  no curso fundamental […], éramos incentivados a escrever […] e, assim, foram surgindo naturalmente poemas sobre a natureza, algo que me atraía, pelo fato de eu gostar de estar ao ar livre, em  jardins, nos campos − piqueniques aos domingos −  ou passeando em florestas. (RENAUX, 2022)

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Complementando essa informação, a autora afirma que “é observando a natureza que nos enriquecemos visual e espiritualmente, transmitindo aos outros essa riqueza” (RENAUX, 2022). De fato, em seus poemas, a escritora concretiza o valor dessa experiência: “ler as árvores / ouvir suas histórias / descrever suas formas e cores” (RENAUX, 2019, p. 99). Mais uma vez, os haicais asseveram a dependência do humano em relação ao cenário natural, como estabelece Isabelle Stengers, com base em Lovelock e Margulis:

Eles [James Lovelock e Lynn Margulis] incorporavam pesquisas que contribuem para esclarecer o denso conjunto de relações, articulando o que as disciplinas científicas tinham o hábito de tratar separadamente: os seres vivos, os oceanos, a atmosfera, o clima, os solos mais ou menos férteis. (STENGERS, 2015, p. 49-50)

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Os versos transcritos no parágrafo anterior destacam essa ação colaborativa, na qual o homem é apenas mais um participante na gigantesca cadeia. Metalinguisticamente, o poema de Sigrid Renaux menciona o elemento humano como uma parte ínfima da natureza, que, como tal, deve se render à ancestralidade e à sabedoria das plantas (Fig. 1):

Poesia Ecológica e Resistência
Figura 1: Flamboaiã vermelho (Delonix regia). (Foto de Leonir Kobs/Reprodução)

Considerando a urbanidade, respeito mútuo e colaboração intensificam-se. Para demonstrar isso, aliado à destruição gradativa da natureza, alguns poemas de Sigrid Renaux investem nas cenas em que as construções substituíram as matas: “entre prédios / um pinheiro / resquício de planícies remotas / de um tempo verde perdido no espaço / de um espaço verde perdido no tempo” (RENAUX, 2019, p. 73). Metonimicamente, o verde representa as plantas e é associado tanto ao espaço quanto ao tempo, para acentuar a diferença entre passado e presente, levando em conta as alterações territoriais. O pinheiro mencionado no segundo verso não é uma árvore genérica. Trata-se de uma araucária (Araucaria angustifólia), símbolo do estado do Paraná, onde a autora reside. Portanto, nesse ambiente urbano, aumenta a importância das trocas e negociações entre plantas e pessoas, dividindo o mesmo espaço. 

Baseando-se na filosofia de Arnold Berleant, Slovic e Yang discutem esse engajamento, neste excerto: 

O princípio básico de ecologia é que tudo está conectado a tudo o mais. Então ecologia é a ciência de interconexão, de relacionamento. Isso sugere que a “estética ecológica” deve ser […] baseada na ideia de que os humanos são não separados da natureza − nós participamos da natureza. (SLOVIC; YANG, 2010, p. 111, grifo no original, tradução nossa)

A crítica à selva de pedras, que agora ocupa um espaço antes dominado por árvores e flores, também é vista nestes versos: “breve borboleta / à procura das flores que se foram / asas esvoaçando sobre pedras / não mais” (RENAUX, 2019, p. 74); “silva jardim esquina carneiro lobo / água verde / onde floresta e fábula se encontram / sem os passantes se darem conta” (RENAUX, 2011, s.p.). No primeiro poema, a metonímia é usada mais uma vez, quando as pedras passam a representar as construções impostas pela cidade (Fig. 2):

Figura 2: Urubu-de-cabeça-preta (Coragyps atratus) na paisagem urbana. (Foto de Leonir Kobs/Reprodução)

Já o segundo texto organiza-se de modo mais lúdico, aproveitando a etimologia e simbologia de algumas palavras. Seguindo a pista do terceiro verso, os nomes de ruas que fazem parte da geografia da capital paranaense relacionam-se, respectivamente: à origem latina do termo “silva” (silva, silvae), que significa “floresta”; e ao fato de os animais carneiro e lobo serem os protagonistas da fábula “O lobo e o cordeiro”, que, durante a Antiguidade Clássica, contou com uma versão grega, de Esopo (séc. VI a.C.), e uma versão latina, de Fedro (séc. I d.C.). 

Sem dúvida, o desmatamento é um problema antigo e diz respeito aos conflitos entre humanos e  natureza. Inclusive, recentemente, o Brasil foi manchete no mundo todo, com a repercussão do fato mencionado a seguir:

A Amazônia brasileira perdeu 13.235 quilômetros quadrados de árvores em um ano, de acordo com o último balanço anual, […]. A cifra indica que o desmatamento ilegal entre agosto de 2020 e julho de 2021 aumentou 22% em relação ao período anterior, […]. É a maior registrada nos últimos 15 anos. (GORTÁZAR, 2021) 

Opondo os conceitos de pertencimento e de intrusão, no que se refere à extinção da natureza pelo homem, Isabelle Stengers considera que: “A intrusão de Gaia seria a punição do Homem que ousou desafiar a ordem das coisas” (STENGERS, 2015, p. 78). Além disso, a autora esclarece: “[…] não se luta contra Gaia. Até mesmo falar de uma luta contra o aquecimento global é inapropriado – se é importante lutar, a luta é contra o que provocou Gaia, não contra sua resposta” (STENGERS, 2015, p. 59). Portanto, para conter a destruição da natureza, é imperativo as pessoas se conscientizarem da integração que forma o conceito de ecologia, afinal, conforme assevera Evando Nascimento, atualmente não se trata mais de uma “[…] consciência ecológica no sentido clássico, mas de uma consciência de sobrevivência” (MANCUSO; NASCIMENTO; AGUSTONI, 2021). 

Excerto do artigo “Versos florais de Sigrid Renaux”, de Verônica Daniel Kobs, publicado na Revista Cerrados (UnB), v. 31, n. 60, dez. 2022, p. 103-113.


REFERÊNCIAS:

ALAIMO, Stacy. Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature. In: ALAIMO, Stacy; HEKMAN, Susan (Eds.). Material Feminisms. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 2008, p. 238-239. 

GORTÁZAR, Naiara Galarraga. Desmatamento na Amazônia é o maior em 15 anos, e Governo é acusado de esconder dados da COP26. 19 nov. 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11-19/desmatamento-na-amazonia-e-o-maior-em-15-anos-e-governo-e-acusado-de-esconder-dados-da-cop26.html>. Acesso em: 28 mar. 2022.

MANCUSO, Stefano; NASCIMENTO, Evando; AGUSTONI, Prisca. Literatura e plantas. 27 nov. 2021. Disponível em: <https://flip.org.br/2021/principal/programacao/?cat=37>. Acesso em: 15 abr. 2022.

RENAUX, Sigrid. De sons e silêncios. Ponta Grossa: Toda Palavra, 2011.

RENAUX, Sigrid. Luzes na selva. Curitiba: Appris, 2019.

RENAUX, Sigrid. [Sem título]. Comunicação via e-mail entre Sigrid Renaux e a autora deste artigo, no período de 11 a 15 fev. 2022. 

SLOVIC, Scott; YANG, Yingyu. Future of Ecocriticism: Strategicopenness and Sustainability. An Interview with Scott Slovic. Comparative Literature: East & West, v. 13, n. 1, p. 105-116, 2010.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes. Resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac & Naify, 2015. 

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