Bê-á-Bá Dadaísta

Bê-á-Bá Dadaísta

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Com o início da Primeira Guerra Mundial, o movimento Dadá propõe o retorno à primitividade. Sob o impacto destrutivo da guerra, sugeria-se começar do zero e fazer uma arte “nova”:

Com o dadaísmo, uma nova realidade toma posse de seus direitos. A vida aparece uma simultânea confusão de barulhos, de cores, de ritmos espirituais que são imediatamente retratados na arte dadaísta pelos gritos e pelas febres sensacionais da sua audaz psique quotidiana e em toda a sua brutal realidade. Eis a encruzilhada bem definida que distingue o dadaísmo de todas as outras tendências da arte (...). (Micheli, 1991, p. 41)

A “confusão” referida no trecho acima reflete o clima de desestabilidade total, instaurado pela guerra. Rompendo com os padrões vigentes, o movimento passou a investir na “não-superioridade do artista como criador” (Ades, 2000, p. 87). Essa e outras mudanças, que passaram a ser implementadas aos poucos, desde 1916, foram aprofundadas e registradas por Tristan Tzara, em 1918, no Manifesto Dadá. Imperavam o improviso e a aleatoriedade, na criação de uma arte que tinha como princípio básico a reorganização de elementos previamente dados. No texto “Para fazer um poema dadaísta”, o eu-lírico dá as dicas:

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(…)

Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema.

Recorte o artigo.

Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e

meta-as num saco.

Agite suavemente.

Tire em seguida cada pedaço um após o outro.

Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco.

O poema se parecerá com você. (…). (Tzara, 2009)

Seguindo à risca esses passos, chega-se à montagem, que predominou durante o movimento dadaísta. Tudo começou como brincadeira, quando, para evitar a censura, da frente de batalha, eram enviados “estranhos cartões-postais compostos de retalhos de jornais e revistas, em que imagens contrastantes eram combinadas com intenções polêmicas e desmistificadoras (…)” (Micheli, 1991, p. 141). De modos diferentes, a montagem se fez presente em diversas obras dadaístas. A historic seance, de Theodore Fraenkel (Fig. 1), aproxima-se do texto de Tzara. Coerente com a negação da valorização excessiva do autor, o movimento Dadá privilegiava o pré-dado. Em vez de originalidade, importava a seleção e a reorganização, para que os objetos servissem à outra coisa, com função diferente da cotidiana. Sendo assim, a criação artística orientava esse novo olhar, que obrigava também o espectador a mudar a perspectiva, para ampliar a função do objeto, já conhecido, a partir da sugestão de uma função ainda desconhecida, mas possível, pelo deslocamento e pela recontextualização.

Bê-á-Bá Dadaísta
Figura 1: A historic seance (1920). Fonte: www.imj.org.il

Com o ready-made, o artista Dadá enfatizava a hibridização, ao combinar o produto industrializado com o artesanal. No quadro de Fraenkel, percebe-se a importância da imprensa tipográfica, no entanto, a relativização da supremacia do artista fica clara, distanciando-se da teoria estabelecida no Manifesto, apesar de os adeptos mais radicais da vanguarda terem declarado que não seguiam nenhuma “teoria”, já que a composição ainda dependia da ação do autor sobre as peças que ele escolheu, para formar sua obra-mosaico.

Sobre essa junção do industrializado com o artesanal, Chipp cita o testemunho de Hannah Höch: “Numa composição imaginativa, costumávamos reunir elementos retirados de livros, jornais, cartazes ou folhetos, num arranjo que até então nenhuma máquina podia compor” (Chipp, 1999, p.401). Na literatura, uma produção que se aproxima da montagem dadaísta são os “versos harmônicos” de Mário de Andrade, que o autor assim define: 

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Combinação dos sons simultâneos. Exemplo: "arroubos... Lutas... Setas... Cantigas… povoar!..." estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Si pronuncio "arroubos", como não faz parte de frase (melodia), a palavra chama a atenção para seu insulamento e ficava vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e que não vem. (Andrade, 2007)

Em outros versos de “Inspiração”, do revolucionário Pauliceia desvairada, a fragmentação e a junção inusitada dos versos harmônicos se repetem: “Perfumes de Paris… Aryz! / Bofetadas líricas no Trianon… Algodoal!…” (Andrade, 2009). As partículas “telegráficas” continuam a se justapor, isoladas e autônomas pela pausa longa das reticências.

Entretanto, a afinidade de Mário de Andrade com o Dadaísmo não se restringe à fragmentação resultante da montagem. Em Ode ao burguês, o autor modernista parece compartilhar da irritação contra o sistema e do desejo de liberdade citados no Manifesto Dadá:

Todo homem deve gritar. Há um grande trabalho destrutivo, negativo, a ser executado. Varrer, limpar. (…) o protesto aos socos de todo ser voltado para uma ação destrutiva e dadá… a abolição de toda hierarquia e de toda equação social de valores estabelecidos entre os servos que estão entre nós é dadá; (…). (Micheli, 1991, p. 136-137)

Compare-se o trecho do Manifesto, transcrito acima, a estes versos de “Ode ao burguês”: “Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! / Morte ao burguês de giolhos, / cheirando religião e que não crê em Deus! / Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! / Ódio fundamento, sem perdão!” (Andrade, 2009). Aqui, fica clara a reação ao sistema, negando, principalmente, a divisão e a hierarquia de classes.

Voltando à questão da montagem, na utilização dos versos harmônicos por Mário de Andrade, ressalte-se que o abandono dos enjambements reforça a autonomia das partes do verso. Esse procedimento se intensifica, em textos de outros autores modernistas. É o caso de “São josé del rei”, de Oswald de Andrade, e “Cidadezinha qualquer”, de Carlos Drummond de Andrade, nos quais cada verso é responsável por sugerir uma imagem específica, cuja sucessão termina por formar um conjunto que corresponde às cidades dos títulos. Como se os poemas fossem pequenos filmes, os versos correspondem a frames: “Bananeiras / O Sol / O cansaço da ilusão / Igrejas / O ouro na serra de pedra / A decadência” (Andrade, 1972, p. 72). Tal como no poema de Mário de Andrade, aqui as imagens sucedem-se, formando um encadeamento. Mas há diferenças: os elementos, em vez de desconexão, sugerem complementaridade e, além disso, a mudança de um verso a outro intensifica o significado de cada parte que compõe o quebra-cabeças.

Há quem defenda, pela predominância da montagem em várias vanguardas, a afinidade dos poemas de Oswald de Andrade e Drummond com o Cubismo. De fato, a relação com o Dadaísmo sustenta-se mais pelo uso da justaposição e pela ruptura do padrão artístico vigente. Quanto ao Cubismo, destaca-se a lógica entre a imagem e suas partes. Importava, no Cubismo, a “organização numa síntese intelectual que, operando uma seleção, enucleasse os seus dados essenciais” (Micheli, 1991, p. 174). Eis a principal diferença entre Dadá e Cubismo. Embora seleção e justaposição existam nas duas vanguardas, a seleção, no Cubismo, deve focar “dados essenciais”. No Dadaísmo, não havia regras nem sequência. O desafio era justamente confrontar o todo equilibrado que predominava na maioria das obras de arte tradicionais.


Excerto do artigo “Dadaísmo e Surrealismo: zonas fronteiriças da relação interartes”, publicado na revista Todas as musas, ano 1, n. 2, jan.-jul. 2010.

REFERÊNCIAS:

ADES, D. Dadá e Surrealismo. In: STANGOS, N. Conceitos de arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 81-99.

ANDRADE, M. de. Prefácio interessantíssimo. Disponível em: http://www.geocities.com/soho/nook/4880/mario.html. Acesso em: 11 fev. 2007.

_____. Ode ao burguês. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/and.html#ode. Acesso em: 19 nov. 2009.

_____. São Paulo. Disponível em: http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_10/saopaulo.htm. Acesso em: 19 nov. 2009.

ANDRADE, O. de. Obras completas (vol. VII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

HÖCH, H. Dada photo montage. In: CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 401.

MICHELI, M. de. As vanguardas artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

TZARA, T. Dadaísmo. Disponível em: http://www.mundoeducacao.com.br/literatura/dadaismo.htm. Acesso em: 19 nov. 2009.

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