DO POEMA VISUAL AO CLIP-POEMA
Verônica Daniel Kobs
Levando em conta que os clip-poemas também são chamados simplesmente de vídeos ou, ainda, de videopoemas, faz-se necessária uma breve contextualização acerca desse formato. Conforme a pesquisadora Denise Guimarães, o videopoema começou a ganhar espaço “no Brasil e em Portugal, desde os anos 80, quando ocorrem algumas experiências pioneiras com a poesia nas telas dos computadores ou das televisões, […]” (GUIMARÃES, 2007, p. 51-52). Posteriormente, nos anos 1990, o projeto intitulado Vídeo poesia, desenvolvido na Universidade de São Paulo, apresentou criações de autores influentes, nas áreas de Poesia Visual e Tecnologias: “Bomba e SOS, de Augusto de Campos, Parafísica e Crisantempo, de Haroldo de Campos, Femme, de Décio Pignatari, Dentro, de Arnaldo Antunes, e O arco-íris no ar curvo, de Júlio Plaza” (GUIMARÃES, 2007, p. 55).
Com o advento do computador e da Internet, vários poemas de Augusto de Campos ganharam movimento real, transformando-se em clip-poemas. De fato, a espacialidade, aliada ao movimento, caracteriza a maioria dos cibertextos, diferenciando-os das produções impressas, que ficavam restritas à bidimensionalidade da página: “[…] a poesia atual entrou na paisagem eletrônica. […] agora se trata de […] uma rede, de uma infraestrutura composta por computadores, cabos e transmissores […]” (SANTAELLA, 2010). Nesse novo contexto, as experimentações de Augusto de Campos, que sempre buscavam exceder os limites da página e do conceito tradicional de livro, passaram a contar com ferramentas e recursos mais adequados, tanto no processo criativo quanto na divulgação dos textos. Conforme Antônio Risério, esse novo tipo de literatura enquadra-se na categoria de “poemática (poesia + informática)” (RISÉRIO, 1998, p. 126, grifo no original), que o autor define desta forma:
Os efeitos visuais e sonoros que podem ser utilizados em um clip-poema realçam características fundamentais da produção artística de Augusto de Campos. Em Poemóbiles (1974), por exemplo, o autor reuniu vários poemas-objetos feitos em colaboração com Julio Plaza, desde o final da década de 1960. Cada texto dessa publicação tinha como meta o volume e a profundidade das formas, além da espacialidade da palavra, de modo a obter uma nova ordem na aparente desordem da página, de onde surgiam textos em poliedros. No entanto, na era digital, todo o processo manual, que envolvia não apenas a escrita poética, mas também recortes e dobraduras, tornou-se mais simples, devido aos recursos oferecidos pela computação gráfica.
Da mesma maneira, os poemas concretos do autor, que se filiavam à estética da op art, ganharam movimentos reais. Segundo Cyril Barret, embora a art op seja um tipo de arte cinética, ela apenas sugere movimento: “[…] uma obra de Arte Op […] não representa movimento: dá uma impressão de que realmente se movimenta” (BARRET, 2000, p. 184, grifo no original). Pelo modo de dispor as letras e as palavras na página, rompendo com a linearidade do verso, os poetas concretistas investiam na cinese, mas, sem poder realizá-la de modo pleno. O livro físico restringia as possibilidades. Entretanto, na literatura digital, o movimento dinamizou ainda mais os poemas que já demonstravam certa tendência ao formato videográfico.
Em entrevista concedida a pesquisadores da Universidade de Yale, em 1995, Augusto de Campos fez um breve comparativo entre dois momentos da Poesia Concreta: em 1950, quando ela surgiu como forma poética revolucionária; e em 1980-1990, quando se consolidou como influência para a poesia contemporânea:
Como se vê, o autor reconhece que os avanços tecnológicos possibilitaram a potencialização e o enriquecimento do projeto estético delineado pelo trio concretista, no início do movimento. Evidentemente, nesse processo de utilização da nova mídia, a maioria das características de estilo do autor, as quais mantêm estreita relação com o Concretismo de 1950, é mantida. Portanto, prevalecem as associações entre forma e conteúdo, privilegiando a palavra, desmontada e remontada, a fim de gerar novos vocábulos e diferentes sentidos, tal como constava no manifesto da Poesia Concreta:
Entretanto, a mudança de suporte, pelo fato de permitir o uso de programas que facilitam a manipulação da forma e a edição das imagens, além de possibilitar o acréscimo do movimento e de efeitos sonoros, oferece um novo campo para a escrita, assim como exige um posicionamento distinto por parte do público, desafiado a aceitar uma configuração diferenciada para o texto literário: “Na tela do vídeo ou do computador, as palavras se encontram livres das amarras tradicionais, […] articuladas através de procedimentos sintáticos jamais sequer imaginados nos modelos convencionais de escritura” (MACHADO, 2003, p. 219).
O poema “Luxo”, publicado em livro impresso em 1965, e posteriormente adaptado ao formato de clip-poema (Fig. 1), constitui um exemplo dessa “poesia migrante”, que, segundo o crítico Jorge Luiz Antonio, objetiva “fazer uma releitura, no meio digital, […], aproveitando uma certa ‘vocação’ digital, ou seja, aqueles fazeres poéticos que já prenunciavam o uso das tecnologias” (ANTONIO, 2016, p. 14, grifo no original).
Figura 1: Clip-poema “Luxo”. Imagem disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yM8h9Ak5_tw
Na adaptação digital, a sonoridade e o movimento, aliados aos efeitos de proximidade e distanciamento da palavra em relação ao olhar do leitor, aprofundam o sentido do texto, já que a repetição oral do termo luxo acaba por desgastá-lo, tornando-o algo trivial, até ser desinvestido de sua aura. Do luxo, então, faz-se o lixo. Por outro lado, permanece o contraste entre o fundo da página/tela e a cor das letras, assim como o tipo de fonte utilizada (Alegrian) também é mantido. Nesse aspecto, considerando que dezenas de palavras luxo formam a palavra lixo, tanto o poema impresso quanto o clip-poema enquadram-se na categoria de “infopoesia”, cujo conceito é a “produção de imagens com palavras” (GUIMARÃES, 2007, p. 90). No entanto, o texto de Augusto de Campos investe ainda mais na criatividade e na construção de sentido, porque a imagem resulta em uma oposição (luxo vs. lixo), que é decorrência da troca de uma letra apenas, mas que altera completamente o sentido.
REFERÊNCIAS
ANTONIO, J. L. Poesia eletrônica: negociações com os processos digitais. 2005. Disponível em:
<https://rialta.org/wp-content/uploads/2022/09/41_Jorge-Luiz-Antonio_Presentacion-al-libro.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016.
BARRET, C. Arte cinética. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 184-195.
CAMPOS, A. de. Luxo (1965) − Augusto de Campos / Cid Campos. 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yM8h9Ak5_tw>. Acesso em: 7 mai. 2023.
CAMPOS, H.; CAMPOS, A. de; PIGNATARI, D. Teoria da poesia concreta. Textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975.
GUIMARÃES, D. A. D. Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.
MACHADO, A. A televisão levada a sério. São Paulo: SENAC, 2003.
RISÉRIO, A. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998.
SANTAELLA, L. A poesia concreta como precursora da ciberpoesia. 4 fev. 2010. Disponível em: <http://issuu.com/mimacarfer/docs/outubro>. Acesso em: 28 abr. 2015.
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Excerto do artigo “Clip-poemas de Augusto de Campos: Por uma poesia ainda mais concreta”, publicado na revista Todas as Letras, v. 25, n. 3, São Paulo, set.-dez. 2023, p. 1-16.