Rosquinha
Raul teve a ideia enquanto remoía as discussões recentes com Júlia. Ela andava bem irritadiça e misturava o estresse da “vida extra Raul” com a irritabilidades geradas pelo relacionamento.
O rapaz tentava se esquivar como podia das cismas arbitrárias. No dia anterior conversava com sua prima Janete no whatsapp enquanto conversava com Julia. Confundiu-se em determinado momento e chamou Júlia de Janete. Raul não entendeu o porquê da namorada estender a discussão tanto tempo depois dele ter mostrado os prints da conversa com a prima.
Até porque Júlia conhecia Janete.
Foi o marco inicial para as discussões. Raul ficou constrangido quando ela lhe disse detestar ser chamada de Juju em meio à fila do cinema (em seu um ano e meio de namoro ele sempre a chamara assim e ela nunca demonstrou insatisfação) e não disse nada quando ela reclamou que ele havia jogado sal demais na batata frita, mesmo ela tendo dito não querer batatas quando a ofereceu, em frente ao guichê do Burguer King.
Raul era um cara paciente e insistente. Afinal, amava Júlia.
Então tentou agradá-la.
Convidou-a para um piquenique num parque indicado por seu amigo Matheus. Tinha muitas coisas interessantes lá, segundo o sujeito; um excelente lugar para levar uma mina que curte ambientes naturais.
Júlia chegou irritada com alguma coisa relacionada à sua mãe. Raul concordou com tudo o que ela falava enquanto tentava chamar a atenção de seu amor para o palácio das aranhas, às formigas cabeçudas, às flores raras, ao borboletário, às aves mansas e aos miquinhos sacanas.
Sentaram-se junto ao lago artificial do parque, na parte onde a orla era rodeada por uma cerca viva de um metro. Estenderam ali uma toalha e sentaram-se, de frente para uma espécie de praça de lazer.
Raul foi tirando o que trouxera na cesta pra fora. Queijo, goiabada, doce de leite, coxinhas, empadinhas, suco, refrigerante, vinho, uvas, pêssego…
Quando tirou a rosquinha de sonho recebeu a aprovação da namorada em forma de beijo. Era sua guloseima favorita. Branca, macia, com uma cobertura rosa com um pouco de queijo ralado por cima.
Raul depositou-a sobre a toalha e propôs comerem das outras coisas primeiro.
O papo foi agradável. Júlia contou que sua mãe andava palpitando demais a respeito do seu corte de cabelo e pareceu deixar de lado a rabugice quando um adestrador de cães profissional fez um show na praça com bichos extremamente carismáticos.
Enquanto aplaudia a acrobacia de um poodle, Raul ouviu Júlia perguntar:
— Cadê a rosquinha?
Ele virou-se, pronto para dizer “ali”, quando viu que ela não estava lá.
— Uai! — soltou, surpreso.
— Você comeu minha rosquinha, Raul? — Júlia perguntou, irritada.
— Eu não. Eu deixei ela ali.
— Se você não comeu, onde está então?
— Sei lá. Um miquinho pode ter pegado.
— Tem alguma árvore por aqui, Raul?
Raul não respondeu. Não tinha como um miquinho se aproximar se a árvore mais próxima estava a mais de vinte metros à frente deles e atrás havia apenas o lago.
Ficou olhando para os cachorros, pensativo, descartando quase de imediato que algum deles fosse o culpado. Certamente teria notado se algum tivesse se aproximado. Empenhou-se em buscar entender o que poderia ter acontecido para a rosquinha desaparecer. Estava absorto nisso, tentando encontrar possibilidades, buscando formular hipóteses.
Para Júlia a cara de devaneio de Raul em direção aos cães (além do silêncio) enquanto lhe falava sobre a rosquinha desaparecia assemelhava-se demais à cara de pau.
— Por que me deu se queria comer? — questionou ainda mais alto.
— Oi?
— Por que não fala logo que comeu a rosquinha? Por que me deu se queria comer e agora fica aí fingindo de retardado.
— Mas eu não comi nada.
A discussão que iniciou-se ali chamou a atenção de quem antes estava assistindo à apresentação do adestrador.
Se Júlia tivesse dado um pouco mais de tempo a Raul, talvez ele tivesse tido a ideia de olhar nos arbustos da cerca viva. Se tivesse olhado veria uma equipe de dezessete formigas cabeçudas carregando a rosquinha com maestria em direção a um formigueiro de boca larga.