Os Prazeres e os Dias de Marcel Proust
O “Prazeres e os dias” é o primeiro livro publicado de Marcel Proust. É publicado na editora Calmann-Lévy a 13 de junho de 1896 – Proust tem vinte e cinco anos nesse momento. À primeira vista e de um ponto de vista formal, trata-se de uma recolha de poemas em prosa e de pequenas novelas. O tom e o estilo levar-nos-ia a inscrever o livro, literariamente, no Decadentismo fortemente influenciado por Robert de Montesquiou.
Neste período Proust publicava de forma esparsa Crónicas e outros formatos literários, edita Os Prazeres e os dias e começa a escrever o Jean Santeuil que terminará por volta de 1899. Este Proust prematuro ainda não é o Proust autor da Busca do Tempo Perdido, mas o élan criativo, a intensidade, o dinamismo de criação, a voracidade literária é já a do arquiteto da “Catedral de palavras” – lembro que o levantamento da Busca do Tempo Perdido tem nove milhões de carateres e, praticamente, um milhão e meio de palavras.
O título “Os Prazeres e os Dias” retoma o clássico “Os trabalhos e os dias” de Hesíodo, poema grego escrito em hexâmetros dactílicos que remonta ao século VIII AC. Este poema também está dividido em diversas temáticas, aflorando, entre outras, a história de Prometeu e de Pandora, as raças da humanidade e fábulas como por exemplo a do falcão e do rouxinol.
O livro é dedicado a William Heath e o prefácio é de Anatole France. Proust, sobretudo nos seus anos de juventude, era um autêntico devoto de Anatole France, é fácil ver em “Bergotte”, personagem da Busca do Tempo Perdido traços quase em retrato de Anatole France e a devoção de Marcel, personagem, por Bergotte, de alguma forma, plasma a admiração de Marcel Proust por France. Essa admiração, com os anos, vai se moderar, mas a amizade manteve-se sempre. Bergotte não é feito exclusivamente das tintas de Anatole France, é, outrossim, uma mistura de France, Pierre Loti e Ruskin.
Muitos dos temas canónicos da Busca do Tempo Perdido estão, de forma evidente, presentes neste primeiro livro, elencá-los é um mero exercício de rotina literária, e muitos contemporâneos, quase todos eles autores de gigantesca qualidade, apesar da aparente fragilidade do livro, viram imediatamente que se estava na presença de um autor excecional, de Leom Blum a Maurras, a lista de profetas é rica e extensa. A visão que o gigante Charles Maurras tem do jovem escritor é especialmente tocante:
“Não é fácil elogiar Marcel Proust: este primeiro livro, Os Prazeres e os Dias, recém-publicado, expõe uma diversidade extraordinária de talentos do jovem escritor de difícil listagem, mas temos de fazer a lista! Temos mesmo de admitir que estes dons tão variados não se contradizem, mas que, pelo contrário, formam um belíssimo conjunto harmonioso e brilhante.”
Il n’est pas simple de louer M. Marcel Proust : son premier livre, ce Traité des Plaisirs et des Jours, qu’il vient de publier, marque une si extrême diversité de talents que l’on peut être embarrassé d’avoir à les noter tous à la fois chez un aussi jeune écrivain. Il le faut cependant. Il faut même avouer que ces dons si variés ne se contrarient point, mais, au contraire, forment un assemblage heureux, brillant et facile.
Charles Maurras
Não era incomum, na época, este tipo de “Recolha literária” – hoje caído em desuso tendo sido substituído pelo formato frio de recolha de Ensaios, Artigos e Crónicas – a que se chamava “Literatura de Salão”, constituído, como é o caso, por textos de origem e formato diverso, escrito em momentos e a propósito de acontecimentos e pessoas diversas, muitas vezes com inserção de fotografias, partituras, desenhos e outros adornos. O próprio objeto-livro era uma peça de adorno de Salão, tinha, por isso, de ter certas características que abarcavam o tipo de papel, a capa e a lombada.
Após um primeiro texto dedicado ao “amigo Willie Heath”, segue-se um conto intitulado “A morte de Baldassare Silvande, Visconde de Silvânia”. Neste conto, e nos outros textos, começam a desfilar de forma pálida as grandes temáticas que vão formar os pilares da Catedral de Palavras que será a futura Busca do Tempo Perdido.
Baldassare tem os dias contados (três anos de vida) devido a uma doença, Alexis, o sobrinho, espera que o tio perante este triste vaticínio, tenha uma atitude elevada, desprendida, “espiritual” perante a vida, mas, com tristeza e espanto, percebe que o tio é cada vez mais fútil, mais ignaro, mais snob, mais mesquinho – provavelmente, mesmo perante a morte, não resta ao humano mais do que o humano e as suas banalidades.
Alexis, perante este tio e esta vida medíocre, decide retirar-se da vida ativa e isolar-se. Baldassare, por sua vez, entra num processo que oscila entre a mais rasa mediocridade e até maldade e já algum desprendimento do mundo e da vida. É já a argúcia do jovem Proust que percebe, ao contrário dos moralistas, que a vida não é linear e as pessoas não são sempre uma coisa ou outra e que tudo varia com os homens, os momentos, os dias e as circunstâncias.
Proust introduz a personagem Pia, uma princesa de Siracusa, e com esta entra já em cena na obra proustiana a impossibilidade total do amor. Pia “ama” Baldassare, ao pé do leito deste faz grandes discursos apaixonados com graves juras de amor eterno, este pede-lhe que ela não vá a um baile, mas, o telefone toca, a vasta lista de candidatos amorosos, quem a não tiver que atire a primeira pedra, do whatsapp ativa-se e o “amor eterno e invencível” é rapidamente superado pelos prazeres imediatos e frívolos de que a vida é pródiga.
É o primeiro texto em que Proust expõe com uma clareza cartesiana a sua tese: o amor, por muito puro, verdadeiro e eterno que pareça aos próprios, dura pouco, é sempre regado de ciúmes, suspeitas e desconfianças e, cedo ou tarde, causará um enorme sofrimento aos enamorados, isto acontece porque o “amor” com que se ama não depende, ao contrário do que sempre pensamos, das características da pessoa amada, até porque nunca conhecemos verdadeiramente a outra pessoa, e é por confundirmos estas duas coisas que o amor cresce até proporções, por vezes, patológicas.
Sim. A ideia que se tem de amor eterno é em todos os sentidos um fracasso. Principalmente pela falta de respeito real de um pelo outro: convencionou-se que a. mulher quer sempre modificar o homem…E o homem é sempre um machista controlador….Ambos errados e apenas alguns esclarecidos, lado e outro, do que é “amar” sem complicar… O assunto ainda persiste sendo discutido e poucos saindo dispostos a um relacionamento criativo e respeitoso….
Bravo! Wan.
Estive na casa-museu Proust (tia Leonie) há muito tempo atrás… me agrada pensar que “provavelmente, mesmo perante a morte, não resta ao humano mais do que o humano e as suas banalidades” — ou: na velhice, deixem-nos em paz, à deriva e à espera da indesejada das gentes.