Ficções, de Jorge Luis Borges

Cássio de Miranda

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Qualquer elogio, por mais superlativo, é pouco para falar de Ficções, coleção de contos do brilhante escritor argentino Jorge Luis Borges. Publicado pela primeira vez em 1944, o livro mudou os rumos da literatura mundial e já era pós-moderno antes de o termo ser cunhado, parecendo reunir toda a sabedoria humana em suas 176 páginas. Mas até mesmo dizer isso é insuficiente, pois essa obra contém também pitadas de sabedoria sobrenatural e extraterrena.   

Os 16 contos de Ficções são divididos em duas partes: O jardim de veredas que se bifurcam e Artifícios. O primeiro deles é Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, em que o próprio Borges, numa das diversas instâncias em que se coloca como personagem, encontra uma enciclopédia sobre um planeta fictício, que tem sua própria língua (sem substantivos) e peculiar maneira de pensar o universo. O conto contém a frase sensacional: “Os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens.” Mas criar um mundo inteiro, para Borges, é só o começo.

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Em Pierre Menard, autor do Quixote, Borges nos apresenta a um escritor que se propôs a “reescrever” o clássico de Miguel de Cervantes – repetindo-o palavra por palavra. Segundo o narrador, que presumimos ser Borges na qualidade de crítico literário da obra de Menard, a segunda versão do livro é mais rica do que a original, pois Menard a escreveu à luz de acontecimentos posteriores à 1602. Com esse conto, Borges antecipou em algumas décadas a teoria pós-moderna de que o significado de um texto é dado pelo leitor, e não pelo autor deste.

Ficções, de Jorge Luis Borges,
Ficções, do escritor argentino, foi publicado em 1944. (Imagem: Reprodução/Internet)
 

Em A biblioteca de Babel, Borges nos leva até uma biblioteca que contém todos os livros possíveis e que existiu antes de todas as outras coisas. Em As ruínas circulares, nos apresenta a um homem que deseja criar outro homem, torná-lo real, através de um sonho: “Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade.” Em Funes, o memorioso, fala de uma pobre alma que vive assombrada, pois se lembra de tudo, absolutamente tudo o que já lhe aconteceu.

E, no meu conto preferido do livro, O milagre secreto, Borges conta a história de um Jaromir Hladík, um escritor judeu preso pela Gestapo em Praga, em 1939. Hladík é condenado à morte e faz um pedido a Deus: ter tempo de terminar um drama em verso, intitulado Os inimigos.

Na noite anterior a sua execução, Hladík sonha que está na biblioteca do Clementinum, um prédio histórico de Praga, e diz ao bibliotecário que procura por Deus. O bibliotecário responde: “Deus está numa das letras de uma das páginas de um dos quatrocentos mil tomos do Clementinum”. Mas Hladík encontra Deus no primeiro livro que abre, e Deus lhe diz que seu desejo será atendido. O final é uma das melhores coisas que eu já li na vida – mas eu não vou contar aqui.

Ao ler Ficções, entramos em contato não apenas com a riqueza da imaginação de Borges, mas também com sua acachapante erudição. É comum interromper a leitura para procurar na Wikipedia, por exemplo, quem foi Thomas De Quincey ou o que é o idealismo empírico. Ao longo do livro, Borges vai tecendo uma teia que mistura o real ao imaginário, atribuindo obras fictícias a autores conhecidos, colocando pessoas inventadas em situações verídicas. A fronteira entre a verdade e a criação não só fica difusa como deixa de importar – o que vale é dar a mão a este cego genial, e ter a honra de ser guiado por ele.

Da Redação (Ficções, Borges)

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