E O NOBEL DO RAUL?
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Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*
Nos últimos dias, pela surpresa causada pelo anúncio do Nobel de Literatura deste ano, a pergunta que recebo é sempre a mesma: e o Bob Dylan? Primeiro, a pergunta veio de um aluno de Letras. Eu tinha sabido da notícia um dia antes. Lembro que fiquei meio atônita, quando ouvi no rádio, mas de um dia para outro mal tive tempo de pensar a respeito. Mesmo assim, quando respondi a essa primeira pergunta, mencionei que entre Dylan e Lou Reed prefiro o segundo. Entretanto, falei também sobre os efeitos da globalização, que talvez expliquem um pouco essa intersecção entre música e literatura. Uma semana depois, recebi nova pergunta, dessa vez de minha mãe. Então, fui levada a pensar ainda mais sobre o fato e, na ocasião, comentamos a possível ira de muitos escritores (e há muitos dignos do Nobel), ao saberem que foram desbancados pelo músico. Tá, trata-se do mestre do folk rock (é verdade), mas, ainda assim, músico.
Mais uma semana se passou e o assunto continuava a me rondar, mesmo que inconscientemente, pois, algumas noites depois do almoço com minha mãe, tive uma insônia terrível. Levantei, passeei um pouco pela casa e voltei para a cama sussurrando a letra de Medo da chuva, de Raul Seixas. Foi aí que o sono me abandonou por completo… Cantando e admirando a letra daquela música, voltei a pensar no caso Dylan e tive a ideia de escrever um texto a respeito. Esbocei mentalmente, levantei outra vez, fiz algumas anotações indicativas para pesquisas e para um projeto mais consolidado e fui buscar entre meus discos de vinil um especial do Raul, com as letras das músicas. Claro que, nessa espécie de rememória da minha fase raulniana, uma canção puxou outra e fui marcando aquelas de maior interesse, de inegável qualidade artística e com a contundência ideológica costumeira de Raul Seixas.
No dia seguinte, com tantas coisas para fazer, dei um tempo no projeto do texto e à noite, ouvi um barulho de coisa quebrando. Foi a tampa do armário em que guardo meus discos de vinil. Ela se abriu de repente, bateu em uma pequena floreira e acabou quebrando a base de um dos vasos que estavam apoiados ali. Tudo bem, a coisa tinha conserto; mas aquela porta nunca tinha se aberto daquele jeito, em mais de quinze anos… Então, vi tudo com algum bom humor: talvez fosse o Raul, lá do além, expressando sua discordância em relação à premiação de Dylan. Diante disso, programei meu compromisso para os dias seguintes e para o fim de semana: escrever o texto sobre o Nobel.
Comecei minha análise com Cowboy fora da lei, que mostra o eu lírico assumindo a voz do filho para contrariar as expectativas dos pais sobre o que ele seria no futuro: nem político, nem militar de carreira; apenas um cidadão comum, para garantir uma vida sem hipocrisia e sem traumas: “Eu não sou besta pra tirar onda de herói / Sou vacinado, eu sou cowboy / Cowboy fora da lei / Durango Kid só existe no gibi / E quem quiser que fique aqui / Entrar pra história é com vocês” (SEIXAS, 2016). Em Eu nasci há dez mil anos atrás, o compositor usa a imortalidade para relembrar momentos marcantes da história do mundo: “Eu vi Cristo ser crucificado / O amor nascer e ser assassinado / Eu vi as bruxas pegando fogo / Pra pagarem seus pecados” (SEIXAS, 2016).
Raul Seixas notou-se por composições com questionamentos filosóficos. (Imagem: Reprodução/Internet) |
Depois, fui para Medo da chuva (afinal essa tinha desencadeado minha vontade definitiva de escrever sobre o Nobel), que associa o pensamento filosófico à rotina do casamento, em uma clara desmitificação da expectativa romântica: “Porque quando eu jurei meu amor / Eu traí a mim mesmo, hoje eu sei / Que ninguém nesse mundo / É feliz tendo amado uma vez” (SEIXAS, 2016). Raul também filosofou em Metamorfose ambulante, ao elogiar a mudança, a incerteza e a liberdade de pensar e falar sem se preocupar com coerência ideológica, afinal a ideologia também é mutável: “Eu vou desdizer / Aquilo tudo que eu lhe disse antes / Eu prefiro ser / Essa metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião / Formada sobre tudo” (SEIXAS, 2016).
Imagem: Reprodução/Internet |
Seguindo mais ou menos essa tendência reflexiva sobre a vida, cheguei a Gita, o sucesso inclassificável de Raulzito. Poética ao extremo, a canção enaltece a onipresença divina, o que serve para aproximar Deus (ou Krishna, já que a canção foi inspirada na Bhagavad-Gitã, uma das partes do Mahabarata) dos homens e de nosso mundo, transformando o etéreo nas ações e nas coisas mais corriqueiras que existem: “Eu sou a luz das estrelas / Eu sou a cor do luar / Eu sou as coisas da vida / Eu sou o medo de amar” (SEIXAS, 2016). Além da temática, a composição lírica demonstra com primazia vários recursos expressivos, como: a anáfora e o paralelismo (“Eu soua luz das estrelas / Eu sou a cor do luar / Eu sou as coisas da vida / Eu sou o medo de amar” (SEIXAS, 2016)), a antítese (“Eu sou a vela que acende / Eu sou a luz que se apaga” (SEIXAS, 2016)), a aliteração (“Dos sonhos, eu sou o amor” (SEIXAS, 2016)), a assonância (“Aforça da imaginação” (SEIXAS, 2016)) e alguns encadeamentos vigorosos (“Eu sou os olhos do cego / E a cegueira da visão” (SEIXAS, 2016)). Neste ponto, aposto que muitos fãs de Dylan podem estar pensando: “Mas Bob também usa esse tipo de recurso!” É verdade. Em Dignity, a anáfora é explorada de modo excepcional: “I went into the city, went into the town / Went into theland of the midnight sun” (DYLAN, 1995), assim como em Rainy day women # 12 & 3,5: “They’ll stone ya when you’re tryin’ to make a buck. / They’ll stone ya then they’ll say ‘good luck’” (DYLAN, 1995). Pois é… Há muitas coincidências entre Bob Dylan e Raul Seixas. Então, se a música foi lembrada no Nobel de Literatura, por que Dylan? Por que não Raul Seixas? Ou Cartola, como sugeriu Fábio Campana?** Mas não. Essas não são as perguntas certas. Vamos tentar ensinar aos suecos da Academia… O que se deve perguntar (de preferência antes de decidir sobre o vencedor do Nobel de Literatura) é: Por que Dylan e não Tolstói? Ou Joyce? Ou Borges?
Como se vê, essas questões não são meramente especulativas. Elas apenas nos forçam a pensar especificamente em um autor de literatura. Explico melhor a diferença: Não é importante saber por que T. S. Eliot (e não Kafka) teve a honra de receber um Nobel de Literatura. Entretanto, é extremamente salutar refletir sobre por que Dylan ( e não Nabokov) teve a honra de receber um Nobel de Literatura. A diferença é sutil, mas fundamental!
É verdade que música e literatura são artes afins. Uma prova disso é que podemos pegar este trecho de Vargas Llosa, sobre literatura, e aplicá-lo também à música:
Ese proceso nunca interrumpido se enriqueció cuando nació la escritura y las historias, además de escucharse, pudieron leerse y alcanzaron la permanencia que les confiere la literatura. Por eso, hay que repetirlo sin tregua hasta convencer de ello a las nuevas generaciones: la ficción es más que un entretenimiento, más que un ejercicio intelectual que aguza la sensibilidad y despierta el espíritu crítico. Es una necesidad imprescindible para que la civilización siga existiendo, renovándose y conservando en nosotros lo mejor de lo humano. Para que no retrocedamos a la barbarie de la incomunicación y la vida no se reduzca al pragmatismo de los especialistas que ven las cosas en profundidad pero ignoran lo que las rodea, precede y continúa. (LLOSA, 2015)
A música também é registro e muito mais que um entretenimento, pois, tal como a literatura, “aguça a sensibilidade e o senso crítico”. Precisamos da música para “continuarmos existindo” e para que não retrocedamos à barbárie da falta de comunicação”. Além disso, música e literatura privilegiam uma sintaxe temporal. Porém, é inegável que as diferenças entre ambas as artes também são reais. Linguagens e recursos bastante específicos caracterizam uma e outra. É verdade que, na origem, o texto escrito e a arte declamatória faziam parte do mesmo produto artístico, como lembra a secretária permanente da Academia sueca, Sara Danius, ao responder sobre a escolha de um músico como ganhador do Nobel de Literatura: “[…] se olharmos para trás, bem para trás, descobrimos Homero e Safo, que escreveram textos poéticos ou peças que foram feitos para ser ouvidos, apresentados, frequentemente junto com instrumentos, e é a mesma coisa com Bob Dylan. Nós ainda lemos Homero e Safo e gostamos” (BBC BRASIL, 2016). Heresia! Como se não bastasse ter ganhado o Nobel de Literatura, agora Dylan é comparado a Homero e a Safo… Mas vamos nos ater ao anacronismo do argumento da secretária, afinal, atualmente, essa interdependência entre texto escrito e declamação não caracteriza mais a literatura de modo essencial e, mesmo que o fizesse, Bob Dylan não seguiria e mesma regra; Arnaldo Antunes, por exemplo, sim. O ex-titã escreve com intenção literária e depois, eventualmente, transforma o texto poético em música. Dylan escreve com outra preocupação: fazer música (e por isso a arte dele é muito diferente da literatura!).
Segundo Santaella e Nöth, a música, “no seu movimento de puras relações”, sempre foi “a mais matemática dentre todas as linguagens” (SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 90). Os mesmos autores (2009, p. 91-92) listam os componentes necessários à musica: sons harmônicos, som gerador, volume, ondas sonoras, timbre, níveis de intensidade e o próprio ar (“material elástico”). Alguns desses elementos são esporádicos na literatura e, ainda assim, importam mais ao gênero lírico. Porém, na música, são todos obrigatórios. As distinções existem até mesmo nas artes que têm mais afinidades, a exemplo do cinema e do vídeo (Cf. SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 93). O que dizer, então, da comparação entre música e literatura?
Conforme Compagnon, que, em O demônio da teoria, discute sobre o valor literário e a intenção, afirma: “É uma sociedade que, pelo uso que faz dos textos, decide se certos textos são literários fora de seus contextos originais” (COMPAGNON, 2003, p. 45). A Academia sueca agiu com esse intuito, retirando a obra de Dylan de seu “contexto original” e conferindo-lhe o status de literatura. Porém, as coisas são como são: “O contexto de origem [ou seja: a música, no caso de Bob Dylan] restitui o texto à não-literatura, revertendo o processo que fez dele um texto literário […]” (COMPAGNON, 2003, p. 45). E, para completar, o autor é categórico em seu julgamento: “[…] a literatura é uma inevitável petição de princípio. Literatura é literatura, aquilo que as autoridades (os professores, os editores) incluem na literatura” (COMPAGNON, 2003, p. 46, grifo no original).
Para Compagnon, a intenção é o que consolida o aspecto literário de um texto e, nesse ponto, ele cita a definição de Picard: “Por literário – ‘obra literária’, ‘estruturas literárias’ – ele entende ‘organizado, consciente, intencional’” (COMPAGNON, 2003, p. 66). Então, reafirmo: Dylan escreve com outra preocupação: fazer música (e esse é o problema!), pois a “única intenção que conta em um autor [de literatura] é a de fazer literatura (no sentido em que a arte é intencional)” (COMPAGNON, 2003, p. 81). Bakhtin, muito antes de Compagnon, já afirmava a intenção como pré-requisito do texto literário:
[…] o ato criador do autor realiza-se inteiramente apenas no contexto dos valores literários, sem ultrapassar o âmbito que o configura, e todos os seus aspectos só são pensados através desse contexto que abrange sua realização; é aí que ele nasce, é aí também que encontra seu acabamento, é também aí que morre. (BAKHTIN, 1997, p. 209)
A Academia de Estocolmo desconsiderou esse aspecto básico e denominou a intenção da obra de Dylan “sob o pretexto de tratar-se de uma intenção em ato e não de uma intenção preexistente”, concorrendo apenas “para gerar confusão” (COMPAGNON, 2003, p. 95).
E a confusão foi, de fato, gerada. É certo que estamos em um momento que privilegia a relação interartes, mas essa qualidade ainda não conseguiu diluir por completo as fronteiras. Se tivesse conseguido, a necessidade de compartimentar e de classificar não seria uma constante. Antes de a Academia sueca ter expandido seu critério, dando um prêmio literário a um músico, era necessário repensar, redefinir e reescrever os critérios para, daí sim, de modo legítimo, expressar, tanto na teoria como na prática, a pluralidade que caracteriza nossa época.
Nobel de Física, Nobel de Fisiologia, Nobel de Medicina, Nobel de Literatura, Nobel de Química e Nobel da Paz… A existência de todas essas categorias já demonstra a incongruência da atribuição do Nobel de Literatura a Bob Dylan. Enquanto essa divisão permanecer e enquanto existirem prêmios específicos de música (Grammy), de cinema (Oscar), etc., o mundo continuará a ser compartimentado. Isso, claro, consolida as diferenças, por um lado, ao estabelecer fronteiras. Porém, é um modo viável de organizar as coisas e atribuir afinidades e responsabilidades.
Ao nomear Dylan como vencedor do Nobel de Literatura, em 2016, a Academia abriu um perigoso precedente. Logo, físicos, médicos e até jogadores de futebol poderão ganhar o Nobel de Literatura. Seria justo dar um Urso de Prata a Romero Britto? Ou, talvez, um Globo de Ouro para Stephen Hawking? Deixemos o mestre do folk para a arte da música e para suas premiações específicas. Do contrário, em 2017, já tenho meu candidato ao Nobel de Literatura e, na torcida, com prazer vou gritar, como se estivesse em um show lotado: “Toca Raul!”
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BBC BRASIL. As razões da Academia Sueca para premiar Bob Dylan com o Nobel da Literatura. Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2016/10/as-razoes-da-academia-sueca-para-premiar-bob-dylan-com-o-nobel-da-literatura.html>. Acesso em: 14 nov. 2016.
COMPAGNON, A. O demônio da teoria. Literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
DYLAN, B. Unplugged. Sony Music Entertaiment Inc. and MTV Networks; Columbia Records, 1995. 1 CD.
LLOSA, M. V. Elogio de la lectura y la ficción. Disponível em:
<http://elpais.com/diario/2010/12/08/cultura/1291762802_850215.html>. Acesso em: 23 jun. 2015.
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. 4 ed. São Paulo: Iluminuras, 2009.
SEIXAS, R. [Músicas de Raul Seixas – Letras]. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/raul-seixas>. Acesso em: 17 nov. 2016.
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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Doutora em Estudos Literários pela UFPR. E-mail: verônica.kobs@fae.edu
** Para ler o texto de Fábio Campana, acesse o link: http://www.recortelirico.com.br/2016/10/pop-nobel-por-que-bob-dylan-nao-e-digno.html