O dia que deus visitou a Terra
O cérebro humano é capaz de coisas incríveis, mesmo dentro de suas limitações. Possui um sistema de armazenagem excepcional, alta velocidade de percepção e reflexo. Em um instante mínimo avisa seu humano que deve tirar o dedo da chapa, que está quente. Às vezes o faz tão rápido que o dedo sequer chega a queimar, de fato. Um alívio para as pobres células da ponta do dedo, afinal.
Rapidez, velocidade e eficiência, eis o cérebro humano (quando sadio e funcional, é claro). O interessante é que trata-se de um amante da burocracia, o cérebro. Decisões são tomadas somente diante da apresentação de dados. Nada de decidir-se de forma arbitrária quando se é possível tomar a decisão sobre todas as informações disponíveis. Certamente não busca obter informações adicionais ou procurar por mais delas que sejam essenciais quando se é necessário agir de imediato, mas sempre procura fazer as coisas da melhor maneira possível.
E como o faz? Através de um complexo sistema de células, neurônios, nervos e outras tantas coisas extremamente pequenas para os padrões do homem. As informações são passadas “boca a boca” por inúmeros neurônios para todo tipo de ação, como erguer uma mão, por exemplo. Enquanto comanda essa ação, preocupa-se em garantir que seu humano continue respirando, em garantir que sejam enviados os impulsos e ordens para que os demais órgãos funcionem, que os olhos pisquem, que a saliva seja produzida, que uma perna passe à frente da outra numa ordem sincronizada … tudo, tudo. Ao mesmo tempo. Extremamente eficiente. É como diz o ditado: mais vale um cérebro sadio e funcional que várias almas voando.
E o cérebro humano permite aos homens pensarem. De tanto pensarem, produzem. Essas criações são, em grande parte, inúteis. Em contra partida, produzem conhecimento. E especulam. Alguns especulam de forma fantasioso, e outros especulam de maneira lógica. Refletem sobre tudo e, naturalmente, alcançam a reflexão sobre sua existência. Alguns dentre eles dizem que o conhecimento não ocupa espaço, enquanto outros, com uma visão aparentemente mais sensata da coisa, dizem que conhecimento ocupa espaço sim, uma vez que para que ele ocorra, vários neurônios são agitados. Não vou entrar no mérito de dizer quem está certo, embora julgue pertinente dizer que, se partes específicas do cérebro humano forem danificadas, o humano que o detém perde a informação que estava ali. Então talvez é justo dizer que conhecimento ocupa espaço, já que demanda matéria para existir. Se nenhum humano chegou a ocupar todo o espaço que possui para o armazenamento de informação, talvez possamos atribuir tal coisa ao tempo médio de vida de sua espécie, que é consideravelmente baixo.
Uma concepção do cérebro humano a respeito da matéria é que ela não surge do nada. Disso obtém-se três possibilidades: ou são derivadas, ou sempre existiram, ou foram criadas. Embora eu venha apresentando noções reais, não se engane: tenho a intenção de conceber um conteúdo imaginativo, fantasioso.
Com isso, hipoteticarei aqui que a matéria tenha sido criada.
Agora, a respeito de seu hipotético criador, temos novamente um problema. Uma vez que nada surge do nada, ou ele (o criador) sempre existiu, ou nunca existiu. Isso gera um loop infinito.
Mas não irei me prender a isso. Aqui esse criador será tratado como algo que sempre existiu. Esse criador hipotético seria, para todos os efeitos, deus. Não o seu, o meu ou os deles, mas deus. A concepção desse deus é tão mais grandiosa que não escreverei meramente com o D maiúsculo, multiplicarei esse respeito estilístico gráfico por quatro.
Esse DEUS sempre existindo possui suas noções (provavelmente as verdadeiras) da existência, sendo conhecedor de todos os mistérios (que para ele mistérios não são) primordiais dela. Tendo todo esse conhecimento e possuindo poder, cria coisas das mais variadas e que fogem da capacidade de concepção da imaginação humana. Não porque a imaginação humana seja incapaz de concepcioná-las, mas por estar consideravelmente paralelo ao que viu até então.
Enfim, o que quer que esse sujeito crie, é grandioso. Quando termina o processo criativo, dá uns tapinhas para limpar a sujeira proveniente da molduração e arrasta para uma lixeira próxima. Numa das latas de lixo cheia de restos dessas obras há apenas poeira, e essa porcariada toda aglomerou-se e acabou entrando em combustão, formando dentro do saco (que ainda está expandindo) estrelas, planetas e todas as imundices que há no universo.
Em determinado momento, quando DEUS resolveu separar o lixo desagradável do lixo não tão desagradável que havia acumulado num canto, encontrou o universo em meio a sacos fedorentos. Resolveu, como quem acha um bocado de coisas esquecidas na gaveta das coisas esquecidas de seu guarda roupa, vasculhar aquilo para avaliar o que o acaso havia criado.
Quando quase totalmente entediado e prestes a jogar a tralha fora, encontrou uma coisa curiosa. Tratava-se de pequenos ciscos formados por um bocado de lixo que desenvolveu a incrível capacidade de questionar suas existências.
DEUS surpreendeu-se. O acaso havia criado seres de consciência. Aquilo que segurava não era um mero lixo, era um lixo especial*, como um cartão de um ente querido falecido que você encontra em meio às coisas esquecidas na gaveta do esquecimento. Digno de ser colocado na pilha de lixo que voltará para a gaveta, e não na pilha de lixo que iria, efetivamente, para o lixo. Assim como você leria antes de guardar o cartão novamente, DEUS resolveu visitar os homens.
O primeiro homem que saudou apertou-lhe as mãos com energia e lhe colou um adesivo no peito. Falou até secar-lhe a saliva. Quando despediu-se e foi embora procurar por um copo de água, DEUS estava convencido que a ideologia estampada no adesivo em seu peito era a mais sensata já criada pelos homens, muito embora estivesse incomodado com o não aprofundamento de mais ideologias por parte do primeiro.
DEUS deu as costas para a direção que o primeiro havia ido e caminhou para o lado oposto. Não demorou muito e recebeu um olhar azedo de outro homem, quando este viu o adesivo em seu peito. Este segundo tinha um outro adesivo no peito, e DEUS notou que ali estava um representante de uma ideologia contrária. Tentou saudá-lo com alegria, mas foi ofendido. Afastou-se, arrancou o primeiro adesivo do peito e foi à procura de outro que portasse o segundo adesivo, no intuito de ouvir o que este tinha a dizer.
E ouviu. Ao final havia identificado os problemas da primeira ideologia. Suas contradições, hipocrisias. E o mesmo em relação à segunda, de acordo com a perspectiva da primeira. Achou aquilo interessante, mas problemático. Saiu à procura de mais coisas interessantes. Divertiu-se com o farfalhar das bandeiras que portavam os símbolos das ideologias e seguiu, curioso, as passeatas que encontrava.
Quando os caminhos das passeatas distintas levaram a um ponto em comum, horrorizou-se com o que viu. Os humanos trocaram violências com fervor. Ofensas e golpes com mastro de bandeira na cabeça um dos outros, antes que aquilo que parecia ser uma equipe qualificada para acalmar os ânimos chegasse e unisse forças com um dos grupos ideológicos, descendo o cacete no grupo que era contrário a ideologia do governador do estado, como DEUS veio a descobrir pouco depois.
Não valeria a pena manter o saco de lixo por perto para aquilo, DEUS pensou enquanto levava um golpe de cassetete de um policial que ficou indeciso por um tempo sobre dar ou não o golpe, uma vez que DEUS já não portava adesivo ou bandeira alguma.
Não, não valeria a pena. Iria jogar no incinerador e dar um fim àquela baboseira estúpida.
No entanto, ao afastar-se um pouco da multidão enfurecida, encontrou um outro humano, desprovido de adornos ideológicos, observando a cena com uma expressão de desaprovação. Saudou este humano com alegria e foi recebido com tristeza. Uma conversa rápida bastou para que DEUS soubesse que nem todos naquele lugar eram estúpidos. Despediu-se e foi embora, lembrando de assuntos mais importantes que deveriam ter sua atenção. Separou o saco de lixo onde os humanos viviam para a pilha do lixo que não iria ser incinerado, deixando-o ali a esmo para lhe dar atenção somente quando tivesse de separar o lixo novamente. Imediatamente ao fazê-lo, ficou tão alheio ao conteúdo do saco quanto era antes de abri-lo para averiguação.