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A “Estranha forma de vida” de Amélie Nothomb

“Uma forma de Vida” é o décimo nono romance publicado por Amélie Nothomb na editora Albin Michel com a qual a autora tem uma relação

A “Estranha forma de vida” de Amélie Nothomb 3

“Uma forma de Vida” é o décimo nono romance publicado por Amélie Nothomb na editora Albin Michel com a qual a autora tem uma relação umbilical. Tal como António Lobo Antunes e outros autores, a prolífica  Amélie Nothomb escreve diversos romances por ano e publica apenas alguns: nem tudo o que sai do processo de escrita se destina ao público ou aparece numa forma publicável.

Amélie Nothomb é conhecida por responder aos leitores. Responde de forma totalmente arcaica: sem recurso à internet. Com os anos foi acumulando um acervo epistolar e toda uma lista heterogénea de correspondentes, como ela mesmo diz, antes de ser romancista (profissional)  é epistológrafa (amadora). Neste livro, Amélie Nothomb, de forma indireta, expõe a sua posição e sentimentos em relação às sucessivas trocas epistolares ao longo da sua vida literária e, no limite, faz uma profunda reflexão sobre a comunicação humana em geral e a comunicação “moderna” através dos media e dos suportes eletrónicos: o nosso discurso está sempre dependente da aceitação  da verdade do discurso do outro e, uma vez que não há meio eletrónico de aferição, o outro, no fundo, mente sempre. Se não mente diretamente, conta uma meia verdade que se torna uma mentira e meia.

 

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A “Estranha forma de vida” de Amélie Nothomb 2
Amélie mantém relação estreita com seus leitores. (Foto: Libreria All’Arco/Reprodução)

 

Muitos críticos veem ainda neste livro toda uma resposta fantasmática aos leitores e correspondentes de Amélie Nothomb. Os leitores, atribuem-lhe capacidades desumanas de escrita, tentam aparecer socialmente associados a ela, tentam induzir-lhe temas de romances – muitos amadores têm conceções mecanicistas da escrita de romances, como se o autor escolhesse o tema, os personagens e o estilo de cada romance. Ainda penso que nenhum autor é imune aos ecos diretos e indiretos da sua obra e que esta rapidez moderna de acesso ao produtor tem, muitas vezes, aspetos negativos: o autor está demasiado exposto à comunicação exterior, até pelas exigências de divulgação, e pouco às suas fontes interiores de produção – é por isso que Amélie Nothomb, pelo menos, traça a linha de só receber e responder a cartas.

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A obra inicia-se com uma carta estranha enviada  por um leitor, um soldado americano, Melvin Mapple, em missão no Iraque a uma escritora de nome Amélie Nothomb – alusão óbvia ao caráter autobiográfico da ficção . Melvin descreve a má situação que vivia em Baltimore (cidade violenta e com bolsas gigantescas de pobreza dos USA) com fome extrema e total falta de perspetivas de vida e, para fugir a essa situação, para não morrer de fome, alista-se no exército. Melvin dirige-se a Nothomb, na primeira carta, dizendo que “sofre como um cão. Precisa de um pouco de compreensão…” e que ela o compreenderá, por certo. De Baltimore para o Iraque vai a distância de dois infernos.

Se os soldados americanos na guerra do Vietname apaziguavam o stress de guerra com doses generosas de álcool, erva e prostitutas (cliché dos filmes de guerra americanos), as cartas de Melvin Mapple vão mostrar à interlocutora a nova droga: a comida.  O raquítico Melvin, vindo das ruas de Baltimore vai reinventar-se, transformando o corpo num ogre de 190 kg. O peso não é um acontecimento fortuito, é um work in progress, uma obra de arte, uma transformação-ação sobre a tela que é o corpo e é, no fundo, um ato de sabotagem – como toda a obesidade. Quando os soldados regressam das missões entregam-se à ingestão histérica e descontrolada de comida e refrigerantes, as sucessivas bombas calóricas, como em qualquer obeso, destinam-se a produzir a tão desejada sensação de conforto emocional. Aos poucos, surge o verdadeiro protagonista do romance: o corpo humano.

 

A “Estranha forma de vida” de Amélie Nothomb
A comida é um dos temas do romance. (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)

 

Por que responde o personagem Amélie Nothomb à cartas tão fora do seu universo de leitores? A autora e, por extensão, a escritora-personagem, responde por cortesia, por curiosidade e também por identificação com o distúrbio alimentar: Amélie é anorética – ninguém deixa de o ser na vida. Obviamente que a cada carta, tal como em toda a comunicação ininterrupta, vai-se gerando uma intimidade.

A escritora começa por lhe enviar os seus livros traduzidos em inglês e com dedicatória, ao que ele responde não ter necessidade de tal coisa, uma vez que ele já os tem todos e é mesmo por isso que lhe escreve. Melvin é, obviamente, um soldado de romance: gasta todo o dinheiro que ganha no exército a comprar livros, depois, passa o tempo a ler e a comer, como muitos infelizes.

Melvin vive no território mais perigoso do mundo: o Iraque. Cada saída do seu pelotão tem sempre uma carga de morte e, com o relato, intimidade e correspondência com a escritora Amélie, esta é, por sua vez, também introduzida num território perigoso: o da relação com os leitores, fãs e correspondentes – cada livro é um atentado! Há escritores particularmente perigosos, por isso o poder vai tacitamente matando a Literatura. Colocamo-nos sempre em risco quando escrevemos, por isso muitos, apesar do talento, não escrevem e esse perigo é ainda maior se nos expomos em correspondência. Amélie Nothomb, a autora usa (e abusa, segundo alguns) da metáfora feminina do parir livros, vive permanentemente “grávida de romances” em gestação dentro de si. Amélie está grávida de literatura, mas a barriga que cresce é a do soldado Melvin, alusão à piada fácil da associação do homem obeso à gravidez, qualquer obeso tem a simbologia da gravidez, da barriga proeminente, do sinal social de paternidade futura. Melvin torna-se a barriga de aluguel da fertilidade literária de Amélie, a obra da escritora cresce no corpo do leitor, como um bebé. O leitor Melvin alimenta-se dos livros da autora. A autora anorética não come e escreve, alimenta-se de escrita e o leitor bulímico absorve tudo desmesuradamente, a comida, os livros e os sonhos. Todo o autor tem fome de ser lido! A autora é uma perigosa terrorista: em vez de comer, explode-se em Literatura.

Descobre-se, então, que Melvin, com uma barriga daquelas, só pode estar grávido. Estando em Bagdad (Iraque), só pode estar grávido de Xerazade: todo o homem solitário e sofredor tem sempre “dentro de si” o sonho de uma mulher linda, inteligente que o ame e lhe conte histórias até ao amanhecer.

 

A “Estranha forma de vida” de Amélie Nothomb 1
A escritora belga é bem produtiva e mantém, ao menos, uma publicação por ano desde 1992. (Foto: Divulgação)

 

Melvin espelha no seu corpo a monstruosidade que vê à sua volta  no teatro de guerra do Iraque. Engordar é a nova forma de resistência passiva, é uma variante da filosofia do magricelas do Gandhi: o pacifismo dos gordos! A resistência ao movimento pela obesidade! Os mártires e místicos são todos magros por recusa ao consumismo sem sentido dos sentidos e do mundo, mas, para Melvin, engordar é uma forma de não morrer, de não morrer em guerra e de se “agarrar à vida”.

De repente, a correspondência interrompe-se e dá-se o inevitável volte-face: é a escritora que quer saber de Malvin. A curiosidade é tão grande que acaba mesmo por quebrar uma promessa: sai à procura do soldado. O leitor torna-se o herói do livro – desejo oculto de todo o leitor: dominar o autor e ser o seu herói. A escritora acaba mesmo presa como terrorista na Prisão de Guantánamo.

Tudo o resto, como em toda a comunicação humana em geral e epistolar-eletrónica em particular, se resume facilmente no famoso título do livro de contos, de tantas outras noites, do divino Aragon “a mentira verdadeira”. 

 

Leia outros textos da coluna (aos domingos) do Frank Wan clicando aqui.
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7 anos atrás

[…] espaço que escrevi sobre Amélie Nothomb tratava o livro “Une forme de vie”(leia clicando aqui), um livro já de 2010. Por muito que Amélie nos tente “vender” a ideia da escrita que lhe […]

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