Verônica Daniel Kobs
Afeitos à urgência do mundo contemporâneo, os minicontos voltaram à moda, por corresponderem estritamente às características do tempo, que, para Ramon Tessman, “hoje […] não é mais linear, mas sim, fragmentado” (Tessman, 2016). Outra qualidade dos textos brevíssimos é o convite à participação do leitor, em sintonia com a atividade e o autodidatismo que preponderam na Internet:
[…] desenvolveu-se, a partir dos anos [19]60, um tipo de narrativa que tenta a economia máxima de recursos para obter também o máximo de expressividade, o que resulta num impacto instantâneo sobre o leitor. Trata-se do chamado miniconto. Seu efeito de recepção é muito forte exatamente por sua condensação. […]. Isso o transforma numa metáfora da velocidade com que circulam os seres, as mensagens, os objetos, os textos nas sociedades contemporâneas. (Paulino et al., 2001, p. 137-138)
Na coletânea Minicontos coloridos (http://www.literaturadigital.com.br/minicontoscoloridos), o idealizador e organizador Marcelo Spalding combina o caráter reticente da prosa sintética à estrutura hipertextual, oferecendo ao leitor um menu em forma de árvore. Nessa espécie de labirinto textual, em que todo o conteúdo só pode ser acessado por meio de hiperlinks, o leitor interage intuitiva e ludicamente, testando algumas possibilidades cromáticas na escala RGB:
Minicontos Coloridos é uma forma sinestésica de escrever ficção, pois todos os minicontos foram produzidos a partir da cor. São 3 gradações para cada uma das 3 cores primárias da luz (escala RGB), totalizando 27 minicontos. […]
O objetivo principal é fazer com que o leitor tenha uma nova experiência de leitura de ficção, precisando intervir para ler o maior número de textos possíveis. (Spalding, 2013)
Depois de definir as porcentagens da escala RGB — red (vermelho), green (verde) e blue (azul) — é preciso acionar o botão “Pinte seu Miniconto” (Spalding, 2013). Como exemplo, pode ser apresentado o miniconto que resulta da soma de vermelho (0%), verde (0%) e azul (25%): “Juntava gotas de chuva em um pote. Adorava ver a tempestade se formando no copo d’água. Evandro Melo” (Spalding, 2013). Evidentemente, a cor é um signo visual de suma importância na leitura e interpretação desse miniconto, porque a tonalidade escura e sóbria ajuda a concretizar o prenúncio do mau tempo. Portanto, nesse caso, é preciso ler não somente as palavras, mas também a cor, já que o signo verbal é usado em consonância com o visual (Fig. 1).
Imagem disponível em: http://www.literaturadigital.com.br/minicontoscoloridos/miniconto.php?vermelho=0&verde=0&azul=25&button=Pinte+seu+Miniconto
Em Minicontos coloridos, há inúmeras possibilidades de combinação como consequência da ativação dos hiperlinks e do uso da paleta cromática, que obedecem ao comando de cada leitor. Isso significa que os minitextos não ficam expostos. Eles são resultados de uma programação específica. Os pesquisadores Luís Arata e Ingedore Koch, em seus estudos sobre hipertextualidade, fornecem aspectos que se complementam e estabelecem as principais características dessa modalidade de escrita on-line. Enquanto o primeiro destaca a autonomia do leitor — “O hipertexto dá ao leitor escolhas para se desviar de partes do texto, por meio de múltiplos caminhos” (Arata, 2015, tradução nossa) — , a segunda enumera as propriedades disruptivas desse novo modelo, entre elas: “não linearidade”, “volatilidade”, “fragmentariedade”, “multissemiose”, “descentração ou multicentramento” e “interatividade” (Koch, 2007, p. 25).
Sem dúvida, a multiplicidade e o convite à interação exigem que o leitor se adapte a uma proposta totalmente diferenciada de leitura e produção de sentidos. Consequentemente, exigem-se outras habilidades, relacionadas a um letramento digital:
Pode-se concluir que a tela como espaço de escrita e de leitura traz não apenas novas formas de acesso à informação, mas também novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim, um novo letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que exercem práticas de escrita e de leitura na tela. (Soares, 2002, p. 152)
Quando se trata de literatura cyber, o desafio ao leitor não é uma prerrogativa dos Minicontos coloridos, mas de todos os cibertextos, categoria que abrange conteúdos divulgados e/ou criados no ambiente virtual. Pode-se considerar que qualquer texto on-line representa uma experiência minimamente ergódica, apenas pelo fato de usar recursos e dispositivos tecnológicos específicos:
O conceito de cibertexto centra-se na organização mecânica do texto, reconhecendo as implicações do medium como parte integrante do intercâmbio literário. Contudo, também centra a sua atenção no consumidor ou utilizador do texto como uma figura ainda mais integrada do que os próprios teóricos da recepção reivindicariam. (Aarseth, 2006, p. 19)
Entretanto, no caso de Minicontos coloridos, a ergodicidade é realçada por meio da utilização dos textos mínimos, das cores e dos hiperlinks, afinal: “Na literatura ergódica, exigem-se diligências fora do comum para permitir ao leitor percorrer o texto” (Aarseth, 2006, p. 19).
Passando da visualidade para a sonoridade, o projeto Minicontos de ouvir, de autoria de Letícia Schwartz e Marcelo Spalding, contribui com a expressividade artística, ao mesmo tempo em que incentiva a inclusão, já que, conforme depoimento dos organizadores, os audiocontos são destinados a “um público amplo e variado, que inclui pessoas cegas e com baixa visão, crianças e adultos não alfabetizados ou em processo de alfabetização, imigrantes e estudantes estrangeiros” (Schwartz; Spalding, 2014). Dessa forma, a palavra associa-se ao som, consolidando as duas vertentes do conceito de multiletramentos, que, segundo Roxane Rojo, “aponta para dois tipos específicos e importantes de multiplicidade […]: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica […]” (Rojo, 2012, p. 13, grifo no original).
Na página inicial de Minicontos de ouvir (http://www.literaturadigital.com.br/minicontosdeouvir/), o ouvinte se depara com duas possibilidades de acesso aos textos literários. O primeiro deles é a inscrição “Clique aqui para ouvir um miniconto aleatoriamente” (Schwartz; Spalding, 2014), que vem acompanhada da imagem de um rádio (Fig. 2). Basta clicar no desenho para ouvir a primeira história — em formato MP3 e com controle de volume, além das opções play e pause. Contudo, não existe um comando que permita acessar áudios aleatórios em sequência. Se o ouvinte desejar ter acesso a todos os textos da coletânea, é preciso acessar a opção áudios, no menu, que oferece a lista completa de audiocontos e seus respectivos autores. São 51 textos de 16 escritores.
Imagem disponível em: http://www.literaturadigital.com.br/minicontosdeouvir/
A proposta é particularmente interessante porque, apesar de resgatar as origens da literatura, enaltecendo a oralidade, isso se dá por meio da tecnologia. Para produzir e acessar os audiocontos, autores e ouvintes devem utilizar hardwares e softwares, inserindo-se por completo no universo digital. Aliás, atualmente, qualquer pessoa pode fazer seu próprio miniconto sonoro, usando gravadores gratuitos e on-line. #Ficaadica: https://online-voice-recorder.com/pt/. Por essa razão, é salutar o entendimento de Katherine Hayles, para quem “A literatura do século XXI é computacional” (Hayles, 2008, p. 43, tradução nossa).
No entanto, a mesma autora argumenta em favor da confluência das mídias e do transletramento, quando afirma que “Os livros não irão desaparecer, mas também não poderão escapar dos efeitos das tecnologias digitais que os perpassam. Mais do que um modo de produção material (embora o seja), a digitalidade tornou-se a condição textual da literatura do século XXI” (Hayles, 2008, p. 186, tradução nossa). Você já percebeu que, apesar de ser uma arte recente, a literatura digital está contribuindo para a transformação da literatura impressa?
#Referências
ARATA, L. Reflections about interactivity. Disponível em:
<http://web.mit.edu/comm-forum/papers/arata.html>. Acesso em: 27 jun. 2015.
ASRSETH, E. Cybertext: perspectives on ergotic literature. Baltimore: John Hopkins University Press, 2006.
HAYLES, K. Electronic literature: new horizons for the literary. Indiana: University of Notredame, 2008.
KOCH, I. G. V. Hipertexto e construção do sentido. Alfa, São Paulo, v. 51, n. 1, p.23-38, 2007.
LAGMANOVICH, D. El microrrelato hispánico: algunas reiteraciones. Iberoamericana, Liverpool, v. 36, p. 85-96, 2009.
LANDERO, L. Relatos relámpago. Mérida: Junta de Extremadura, 2007.
PAULINO, G. et al. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001.
ROJO, R. Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural e de linguagens na escola. In: ___; MOURA, E. (Orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. p. 11-32.
SCHWARTZ, L.; SPALDING, M. (Orgs.). Minicontos para ouvir. Disponível em: <http://www.literaturadigital.com.br/minicontosdeouvir/>. Acesso em: 2 mar. 2014.
SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação & sociedade, Campinas, v. 23, n. 81, p. 143-160, dez. 2002.
SPALDING, M. Minicontos coloridos. Disponível em: <http://www.literaturadigital.com.br/minicontoscoloridos/>. Acesso em: 23 nov. 2013.
TESSMAN, R. Explorando a era digital: ciberespaço. Disponível em: <http://ramontessmann.com.br/explorando-era-digital-ciberespaco>. Acesso em: 12 abr. 2016.
—————————-Este texto integra o capítulo “Textos mínimos, múltiplos e incomuns”, escrito por Verônica Daniel Kobs e publicado no livro Leituras intermidiáticas e intermidialidades narrativas. Organizada por Cristiane de Mattos, Maria C. Ribas e Thaïs Diniz, a coletânea foi lançada em 2024, com o selo da Editora Pontes.