O que eu descobri lendo Elena Ferrante

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O ano era 2004, eu estava na segunda série do fundamental – o terceiro ano de hoje – quando a conheci. Até então, não tinha feito muitas amizades, sempre gostei de ficar na minha, só falar quando falavam comigo. O problema é que crianças precisam de amigos, eu sabia que não sobreviveria ali sozinha; decidi me aproximar da menina que tinha a mochila parecida com a minha.

Por três anos fomos as melhores amigas do mundo, aquelas que passam todos os recreios juntas, correndo atrás dos menininhos que puxavam nossos cabelos, que dormiam uma na casa da outra, viajavam de férias com a família, chamavam a mãe de “tia” e trocavam bilhetinhos durante a aula sobre aqueles mesmos menininhos. Claro que estes eram escritos em códigos que só a gente entendia, para o caso de algum intrometido decidir tomar o papel de nós.

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Nos afastamos por culpa da vida, que decidiu acontecer enquanto estávamos muito ocupadas fazendo planos de cursar a mesma graduação e dividir um apartamento em Nova York. Ela mudou de bairro e, consequentemente, de escola. Até tentamos manter contato, mas quando você tem 11 anos, amizades de três ônibus de distância não costumam perdurar.

Segui minha vida e ela seguiu a dela; alguns anos depois nos adicionamos em redes sociais, mas nunca mais conversamos como antes. Ano passado, no início da leitura de “Amiga Genial”, primeiro livro da tetralogia napolitana de Elena Ferrante, lembrei novamente de minha primeira amiga.

Durante os anos de amizade, sempre tive a sensação de ser menos que ela. Menos bonita, menos inteligente, menos interessante, a que tem a família menos legal. Ela era a minha Lila. Identifiquei na obra tudo o que senti, anos atrás, naquela amizade, e até mesmo após o seu fim. Assim como Lenu, demorei para me livrar da sensação de ser menos.

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Na época, também vivíamos em uma acirradíssima competição velada, principalmente quando o assunto era os estudos – mais precisamente, as notas. Me sair melhor do que ela em uma prova era uma sensação indescritível, levantar a mão para responder uma questão que ela não sabia me levava às nuvens, mesmo que me sentisse mal ao pensar estar diminuindo ela.

Ler os quatro livros de Ferrante me fez, enfim, lavar a alma. Nunca tinha encontrado algo que conseguisse expressar tão bem a amizade que tivemos, nunca me identifiquei tanto com uma personagem. Por anos fui Lenu, e hoje entendo que, para mim, por anos ela foi Lila.

A leitura dessas 1.697 páginas fantásticas me fez abrir os olhos para muitos comportamentos que ainda tenho para com outras mulheres, as quais considero amigas. A rivalidade, a ideia de ser menor e de, ao mesmo tempo e talvez por isso, querer menosprezar, as disputas pelos Ninos da vida e a relação de dependência, por exemplo.

Poucas vezes li obras que mostraram as relações humanas de forma tão densa e escancarada. O sentimento de perda ao terminar o último livro, “História da Menina Perdida”, foi amansado pela nova noção que ganhei sobre a condição feminina e pela ideia de como seria perfeito o mundo que não nos ensinasse, desde pequenas, a ser esse tipo de amiga.

 

 

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