Ilustres desconhecidos da poesia brasileira: 6 poemas de Ivan Junqueira
ÁSPERA CANTATA
A Sérgio Pachá
É sobre ossos e remorsos
que trabalho. É sobre
pó calcário espinho cardo
que afio o escalpo. É
sobre tudo que vegeto, réptil,
em busca de uma vértebra,
um reflexo, uma aresta
que me devolvam a fala,
a face, a insânia, o pasmo.É desse nada que me basto
e faço agora o meu repasto
– eu, poeta, que tresmalhei
as estrelas e ovelhas de meu Pai;
eu, vosso pastor, a quem Deus,
em sua ira e sapiência,
restituiu à crua consciência
de si mesmo, à de quem
se sabe apenas filho e herdeiro
do deserto, onde só medram
a profecia e a prece – lá,
onde floresce o que se nega
e que, alheio à própria sorte,
já não percebe nem escolhe
entre o que é a vida e a morte.A infância a infância
– outro país, outra verdade…
Fluíam infantas pelas tardes
e os faunos eram ingênuos,
com seus fálus de açucena
e seus cascos de algazarra.E havia sol e havia céu e havia pássaros!
E não havia morte
que nos deste, nem a culpa
de sermos, quando somos, teu reverso,
nem o suplício nem a náusea nem o tédio
de que vivo e me escarnece
à espera da festa
que há de ver-me
vítreo
frente aos vermes.
MEU PAI Eu vi meu pai nas franjas da neblina. Eram tão frias suas mãos defuntas, eram terríveis suas órbitas vazias. Eu vi meu pai, a voz quase inaudível, chamando-me ao seu colo desvalido e a fronte me cingindo como um nimbo de flores e de ramos já sem viço. Eu vi meu pai. E ele sorria. Os lábios imensos a distância percorriam, e o que entre nós fora conflito e abismo agora se fundia em íntimo convívio. Eu vi meu pai. Vi-lhe a loucura, as tíbias finas, o pigarro, o edema, a hipocondria. E os cavalos, o baralho, o vinho. Era ele, sim, não quem eu vira um dia inútil e seráfico no esquife, enfeitado de flâmulas e espinhos. Eu vi meu pai. Era um prodígio que encantava madonas e meninos, e numa esfera aprisionara um grifo. Eu vi meu pai. Era um dândi e um mendigo. Foi-se embora à tardinha. O céu se desfazia em púrpura e agonia. Já se foi. Agora é lágrima e vertigem.
O AEROPLANO
Quando eu fiz cinco anos,
meu pai deu-me de presente um aeroplano
que ele próprio construíra
com finas hastes de bambu e papel de seda.
Tão leve quanto uma libélula,
o frágil engenho voou até desaparecer
por detrás do muro do quintal
e dos últimos reflexos de um poente de verão.
Ninguém jamais o encontrou.
Eu ia na cabine. Eu e minha infância.
que nunca mais voltou.
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ANTIGO
E então mais uma vez me fiz antigo.
O que se foi é a trilha por que sigo,
liberto nas algemas da medida,
dentro da qual me movo em comovida
procura de mim mesmo e de outra vida
que não seja tão só a de uma ida
sem volta àquela instância que persigo:
a de estar todo tempo a sós comigo.
E assim vou indo, príncipe e mendigo,
sem levar fêmea, fâmulo ou amigo
que os passos me acompanhem na subida
ou os pés se lhes travem na descida.
Não misturo-me ao joio. E eis vos digo:
os outros são o inferno. Eu sou o trigo.
E SEU DISSER
E se eu disser que te amo – assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou se te apraz o emprego de tais meios?
E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência – essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.
A MORTE
A Ivo Barroso
A morte é um cavalo seco
que pasta sobre o penedo;
ninguém o doma ou esporeia
nem à boca lhe põe freios.À noite, sob o nevoeiro,
é que flameja o seu reino:
não o da luz que viu Goethe
ao cerrar os olhos ermos,mas o da espessa cegueira,
o dos ossos no carneiro
e o da carne atada às teias
sem alma que se lhe veja.Ouço-lhe os cascos de seda:
são tão fluidos quanto a areia
que escorre nas ampulhetas
ou o sangue no oco das veias.
A morte escoiceia a esmo,
sem arreios ou ginetes;
não tem começo nem termo:
é abrupta, estúpida e vesga,mas te embala desde o berço,
quando a vida, ainda sem peso,
nada mais é que um bosquejo
que a mão do acaso tateia.
Na treva lhe fulge o pêlo
e as crinas se lhe incendeiam;
em cada esquina ela espreita
quem há de tanger ao leito,e ninguém lhe escapa ao cepo:
tiranos, mártires, reis
ou até antigos deuses,
por mais soberbos que sejam.Embora só traga o preto
em seu corpo duro e estreito,
com ângulos que semelham
os de um áspero esqueleto,A morte é estrito desejo:
deita-se lânguida e bêbeda
à lenta espera daquele
que a leve, sôfrego, ao êxtase.
Ivan Junqueira nasceu no Rio de Janeiro em 3 de novembro de 1934. Foi poeta, crítico literário, jornalista e tradutor, tendo exercido, ao longo de toda a sua vida, várias outras atividades no ramo da literatura. Sua poesia já foi traduzida para o espanhol, alemão, francês, inglês, italiano, dinamarquês, russo e chinês. Foi agraciado com diversos prêmios literários, destacando-se, entre eles, o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro (1995, 2005, 2008 e 2010). Traduziu os poemas de Charles Baudelaire, T. S. Eliot e Dylan Thomas.
O poeta faleceu no dia 3 de julho de 2014, aos 79 anos. Completam-se 6 anos hoje…
Lucas, parabéns pelo post-homenagem.
Uma só coisa é meu reparo: Junqueira não é desconhecido. É ilustre.
Gigante Ivan.
A morte é um cavalo seco
que pasta sobre o penedo;
ninguém o doma ou esporeia
nem à boca lhe põe freios.
Viva o Ivan!