A experiência do teatro imersivo

Embora seja mais frequente nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, o teatro imersivo começa a se expandir para outros lugares do mundo, inclusive no Brasil. Em 2020, o espetáculo “As palavras da nossa casa” (Fig. 1) fez sucesso em dois formatos, presencial e on-line. O palco foi a construção histórica Casa das Rosas, em plena Avenida Paulista, no bairro Bela Vista, em São Paulo, antes de o local ser fechado para reforma. Sem dúvida, a escolha do espaço cênico já nos ajuda a entender um pouco do conceito de imersão na dramaturgia, afinal a história é de época e precisa contar com figurino e cenário adequados. Com essa proposta e com um público restrito a cada sessão, a ideia é transportar os espectadores para um tempo não experienciado na realidade, mas que, por meio do teatro imersivo, propicia maior veracidade e simula eventos e situações, envolvendo a plateia na ação.

O objetivo principal da imersão é a proximidade — dos atores e dos espectadores — em relação a um passado recente ou longínquo. Sendo assim, o que antes parecia impossível de ser vivenciado, torna-se viável e, por incrível que pareça, nem sempre é necessário recorrer à tecnologia. Bastam uma história específica, baseada no conceito da imersão, um espaço adequado e um público mais participativo. Claro que há grupos de teatro que associam a imersão à tecnologia, com o auxílio de óculos e capacetes de realidade virtual, mas a maioria das experiências artísticas voltadas a essa modalidade dispensa esses recursos. “Tanto as tentativas de causar a sensação de imersão por meio de dispositivos analógicos quanto àquelas que se utilizam das tecnologias digitais, podem proporcionar ao observador/participante/interator a sensação de fazer parte de outro ambiente” (SILVEIRA, 2011, p. 59).

Apesar dos diferentes meios disponíveis hoje para possibilitar a imersão, o fundamental é trabalhar com temas e espaços que gerem curiosidade e interesse, a fim de servirem como um convite irrecusável aos espectadores. Nesse sentido, o teatro imersivo tenta investir naquilo que o público deseja, mas julga ser impossível de vivenciar. A partir disso, busca-se criar sugestões, envolvendo a plateia em determinados trechos da história, para fazer as pessoas perceberem a ação como se fosse real e como se elas de fato estivessem naquele tempo e naquele espaço.

Especialistas da arte e do entretenimento já relacionaram os princípios do teatro imersivo às características dos espetáculos estrelados pelo mágico e escapista Harry Houdini (1874-1926). É certo que o ilusionista costumava se apresentar em teatros convencionais, mas ele também usava as ruas e espaços inusitados para fazer seus shows. Portanto, o local, a proximidade do público (que se aglomerava em busca do melhor ângulo, para tentar desvendar os truques do mágico) e a interatividade são os elementos responsáveis pela correspondência entre a imersão e as atrações promovidas por Houdini. Aliás, há fontes que afirmam que o mágico tinha experiência como produtor teatral. Finalmente, há os fatos de ele ter se dedicado à área de Marketing e de, na época, sua especialidade como ilusionista estar associada ao chamado Teatro de Variedades. Sob esse prisma, já não parece tão estranha a comparação entre o showman e os atores que se dedicam ao teatro imersivo…

Sobretudo na última década, Nova Iorque (que também foi palco para os truques de Harry Houdini) tem se destacado na dramaturgia imersiva e um espetáculo bastante comentado por público e crítica é “The speakeasy” (Fig. 2). Como o título já sugere, a peça se passa em um bar ambientado nos anos 1920, quando o país vivenciava a Lei Seca. Evidentemente, a tensão da época, repleta de proibições, motiva o público a participar. Aliás, a clandestinidade é explorada ao máximo, porque os espectadores devem usar algumas passagens secretas… Sim, esse é o requisito para entrar, ver a peça, se divertir e talvez até beber uma dose.

Figura 2: “The speakeasy”, peça imersiva encenada em Nova Iorque
Imagem disponível em: https://blueearthcountyhistory.com/wp-content/uploads/2019/01/IMG_7740-scaled.jpg

Rompendo as fronteiras entre realidade e ficção, atores e espectadores usam roupas de época, aumentando o nível de interatividade e de imersão. Além disso, em conformidade com os ensinamentos de Antonin Artaud, concretiza-se o “envolvimento”, que “provém da própria configuração da sala” (ARTAUD, 1984, p. 123), ou, nesse caso, da ausência dela, porque não há um palco propriamente dito. O bar vira palco.

Idealizado por Randy Weiner, mesmo produtor de “The speakeasy”, o espetáculo “Queen of the night” (Fig. 3) utiliza o clube Diamond Horseshoe e é “baseado na ópera de Mozart “A Flauta Mágica’” (EURONEWS, 2015). Nessa peça, o público é convidado a vivenciar a experiência de um banquete, como se fosse um verdadeiro rei ou uma legítima rainha.

Figura 3: Cena da peça “Queen of the night”
Imagem disponível em: https://medium.com/@box1824/teatro-imersivo-e-a-renovacao-da-experiencia-cenica-17fe32a03e8

Evocando os princípios dadaístas do ready-made, a maioria das peças imersivas trabalha com a descontextualização seguida de uma recontextualização. A diferença é que, nessa transição, a mudança não é total. Em vez disso, toma-se um espaço trivial, como um bar, um hotel ou um hospício (como veremos a seguir), para transformá-lo em ambiente para uma história paralela, comum àquele local, mas permeada pelo teatro. Sendo assim, o que era cotidiano passa a ser um elemento essencial em uma expressão artística. É exatamente isso que ocorre em “Then she fell” (Fig. 4), que faz uso de um antigo hospital do Brooklyn. Na peça, que privilegia a democratização, o público também atua, interagindo com o elenco profissional e transpondo o limite que antes o separava da ficção, para experimentar uma espécie de suprarrealidade.

Figura 4: Cena do espetáculo imersivo “Then she fell”
Imagem disponível em: https://static01.nyt.com/images/2016/01/08/arts/08STARRINGJP1/08STARRINGJP1-jumbo.jpg

Outra peça que utiliza espaços cênicos não convencionais é “Outbreak” (Fig. 5). Idealizado por um grupo das Filipinas, esse espetáculo imersivo é realizado em um centro de convenções, porque precisa da amplitude das ruas, dos estacionamentos e dos pavilhões. A peça em questão tem três estágios e sem dúvida o segundo, intitulado “Outbreak Manila”, é o que chama mais atenção. A história encena uma espécie de apocalipse e, nessa fase, ao longo de alguns quilômetros, os espectadores são obrigados a enfrentar uma horda de zumbis, que ameaça as pessoas, perseguindo-as — trôpega, mas incansavelmente.

Adotando uma estratégia transmidiática para divulgar a peça, a companhia criou um site que publica notícias sobre a invasão zumbi (Fig. 6), fornecendo aos usuários dados atualizados, que, por sua vez, alimentam a ficção e potencializam a imersão.

Figura 6: A invasão zumbi em números. Imagem disponível em: http://www.outbreakmanila.com/index.html

Na peça filipina, o improviso é levado às últimas consequências, já que a ação, que envolve medo, perseguição e fuga, depende mais do público do que dos atores. Isso faz com que o teatro imersivo também alcance um nível mais elevado de expressão, aprimorando a “comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar envolvido e atravessado pela ação” (ARTAUD, 1984, p. 123).

Aproveitando a temática aterrorizante do espetáculo anterior, encerramos este texto tal como começamos, com um exemplo brasileiro de teatro imersivo. Trata-se da peça “A jornada de Orfeu” (Fig. 7), que foi realizada pela primeira vez, no ano de 2014, no cemitério do Redentor, em São Paulo. Entre lápides, túmulos e, obviamente, sempre tarde da noite, o espetáculo usa o espaço cênico para dar vida ao reino dos mortos. Esse aspecto mórbido, mas literal, no sentido físico, é o principal responsável pela imersão.  

Figura 7: Cena da peça “A jornada de Orfeu”: uma verdadeira imersão no mundo dos mortos
Imagem disponível em: http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrada/images/14317475.jpeg

Se você achou essa experiência interessante, mas ainda não é adepto do teatro imersivo, muito menos quando relacionado a uma alta dose de terror e morbidez, a dica é fazer um test-drive e participar da visita guiada ao Cemitério Municipal de Curitiba, que, aliás, já foi retomada, depois de ter sido cancelada por mais de um ano, por causa da pandemia de covid-19. Recepcionados por Clarissa Grassi, os visitantes — turistas e também locais — têm uma aula que funde muitas disciplinas (História, Arquitetura, Geografia, Religião, Arte…), além de conhecerem algumas anedotas e curiosidades sobre os curitibanos mais ilustres, que já se foram, mas que continuam vivos em nossa cultura. Então, nessa espécie de preparação para o teatro imersivo, que tal se juntar a eles? No sentido metafórico, claro…


REFERÊNCIAS

ARTAUD, A. O teatro e o seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984.

EURONEWS. Teatro imersivo: Broadway sem barreiras com o público no palco. 2 jul. 2015. Disponível em: <https://pt.euronews.com/cultura/2015/07/02/teatro-imersivo-broadway-sem-barreiras-com-o-publico-no-palco>. Acesso em: 16 nov. 2021.

SILVEIRA, G. A. Imersão: sensação redimensionada pelas tecnologias digitais na arte contemporânea . 125f. Dissertação (Mestrado em Arte). Curso de Pós-Graduação em Artes Visuais. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2011.


LEIA TAMBÉM: Estilos E Tendências No Teatro: A Evolução Do Espaço Cênico (recortelirico.com.br)

Deixe um comentário