O bebê turquesa

Subi o muro com dificuldade. O terreno baldio, além do lixo, tinha árvores frutíferas: goiabeiras, abacateiros e mamoeiros. Sem um proprietário para protestar contra a invasão e sem um concorrente para disputar as frutas, avancei, não sem antes, retirar as sacolas plásticas do bolso da bermuda e construir uma pequena plataforma para compensar a minha falta de altura. O cheiro do monturo de lixo não impediu o meu trabalho. Restava a goiabeira. As outras duas sacolas cheias, protegidas pela sombra, aguardavam meu regresso. O sol, através da folhagem, em pernas frágeis interrompidas pela minha passagem ou dos gatos.

De repente, os bichanos começaram uma reunião próxima à goiabeira diante de um líder ainda invisível. Um semicírculo perfeito. Os ratos saíram dos escombros, os focinhos levantados procuravam um rastro no ar e se dirigiram para o lado oposto do outro grupo. Não foram molestados. A visão parecia produto da minha fome prolongada. A minha família era muito pobre, eu não me alimentava direito e tudo poderia ser um delírio, principalmente a fraternidade momentânea daqueles animais. Olhei para o local fixado e vi um enorme bebê azul. As mãozinhas gorduchas esmagavam as goiabas em um pequeno pote arredondado.

Um sorriso aparvalhado tomou o meu rosto quando uma fila formada pelos bichos se dirigia ao bebê com as mãos repletas de néctar. Todos lambiam a ambrosia em uma espécie de comunhão sem atropelo, ficavam os olhos da criança e voltavam aos seus lugares. Lembrei-me do desenho animado dos Smurfs sem acreditar no encontro impossível. Depois do ritual, abriu-se um caminho e o bebê andou gracioso em minha direção. Os meus olhos perderam a paisagem de vista concentrados nele. A criança azul tomou as minhas mãos e dançamos. O cheiro fétido foi substituído por um aroma floral, o cerco dos animais desapareceu de nosso alcance e estávamos no topo de uma das árvores.

A pequena copa parecia uma nuvem mágica, erguia-se cada vez mais alta, a criança azul percebeu meu medo e apertou mais sua mão à minha. Seu corpo tornou-se translúcido feito uma pedra preciosa, atravessado por luzes brilhantes, era difícil olhá-la, temia ferir os meus olhos. A minha respiração sofria bastante, o meu corpo enfraquecido desistia da lucidez, senti o amparo do bebê turquesa quando meus olhos fecharam de uma vez. Ao abri-los novamente, eu estava apoiado em um tronco e a minha sacola repleta de goiabas. Levantei-me rápido, saltei o muro e levei para casa o alimento. Comemos depressa, sem trocar palavras. Quem lhe deu as frutas? Deve ter sido alguém bem generoso porque não é tempo de … Os meus olhos se arregalaram.

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O bebê turquesa

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