O direito à efeméride
O centenário é de Clarice Lispector, mas efeméride é a palavra de Macabéa, sua última personagem, para quem o vocábulo – e toda e qualquer letra – era um mistério e um desafio. Então, para falar dos 100 anos de nascimento de Clarice é preciso, antes, passar pela morte trágica de sua heroína do asfalto.
Curioso que, ao se despedir da página, Clarice tenha escolhido uma mulher para quem a palavra era, só com muito custo, roubada do silêncio, assim como cada dia é um tempo roubado da morte. Frágil e murcha em sua apresentação de mundo, Macabéa é a um soco. Como tantos outros anônimos, que passam a vida em branco, e ganham os jornais quando protagonizam uma tragédia.
Macabéa incorpora nossa eterna indigência social não simplesmente porque era pobre ou datilógrafa, mas pelo fato de que não tem acesso à palavra que signifique. Ela tem a palavra, demorada, errada, torta, suja, nos papeis que saem da máquina no escritório, mas é destituída do próprio discurso. Não é dona da própria fala. As poucas palavras que ela detém não significam, ela não sabe o que fazer com elas, como se tivesse um punhado de pedras não mão: “Havia coisas que não sabia o que significavam. Uma era ‘efeméride’. (…) Achava o termo efemérides absolutamente misterioso. Quando o copiava prestava atenção a cada letra”.
Ela “copiava”, mas não conseguia juntar uma palavra na outra com um sentido maior, além das esquisitices inesperadas, como as perguntas impossíveis que fazia ao namorado Olímpico – “Você sabe se a gente pode comprar um buraco?”
Alguém já se perguntou por que Macabéa tinha interesse em comprar um buraco? Entre tantas coisas que não tinha, em uma vida desprovida de tudo, ela queria saber onde se comprava um buraco… Macabéa é o nonsense esvaziado, a lacuna personalizada na forma de uma mulher que representa a incapacidade de gerir não só o próprio discurso, mas os próprios passos.
O narrador, como um latifundiário da palavra, usurpa-lhe o direito ao grito – na terra árida onde ela nasce e vive (Rua do Acre) o solo estéril é incapaz de fazer florescer um discurso redentor. Então, ela morre, espatifada, anônima, ignorada, esburacada e sem voz. Macabéa não é construída pelo narrador; ela é desconstruída por ele, célula por célula, ponto por ponto, até o desfazimento completo.
Como se sabe, é pela linguagem que o pensamento se faz e, com ele, as possibilidades de inserção no mundo real. Macabéa é um vago sentimento de existência, apenas isso. Um dos textos mais fortes de Clarice Lispector, A hora da estrela é uma reflexão absolutamente atual. As décadas passam e nada se transforma. Macabéa é a ignorância estrutural de um país que não avança no sentido social a fim de que a palavra com sentido seja, de fato, um direito de todos.
Se Macabéa tivesse tido a coragem e a capacidade de escrever sua própria história, como seria? Se A hora da estrela fosse narrado em primeira pessoa pela própria nordestina, teria tido um destino? Como seria se ela tivesse direito ao grito?
A nordestina foi criada a partir de um “relance”. Assim explica o narrador, também personagem, Rodrigo SM – Sua Majestade? Os relances são uma forma de captura da realidade bem peculiar à Clarice Lispector. “Porque a verdade é um relance”. A frase está em um dos contos referenciais de Clarice Lispector – “Feliz 4 aniversário”, de Laços de família. Quando os parentes se encontram para o aniversário de 89 anos da “mãe de todos”, é o narrador quem flagra os relances do jogo de olhares e os pensamentos, quando as palavras dizem quase nada. Falando nos contos, aliás, estes são talvez a melhor porta de entrada para este mundo necessário de Clarice Lispector.
Com uma enorme produção no gênero, foi nos contos que Clarice criou um projeto estético marcado pela diversidade dos temas abordados e do exercício da linguagem, observação e memória. São mais acessíveis por assim dizer do que as obras mais densas, como A paixão segundo GH, A maçã no escuro, O lustre ou A cidade sitiada. É bem verdade que no terreno do conto também existem os indecifráveis, como “O ovo e a galinha”, por exemplo, complexo e filosófico.
No entanto, de maneira geral, as narrativas curtas de Clarice Lispector se prestam a uma aproximação mais ampla dos leitores e isso é maravilhoso. Um leitor de 11 anos pode perfeitamente ler o belíssimo “Restos de carnaval” em Felicidade clandestina e chorar de emoção. O conto é escrito por um “eu” que remonta à infância da própria autora no Recife, entrelaçando ficção e realidade de forma absolutamente impossível de se detectar o que é real e o que é invenção.
Ela escreve “de coração escuro”, lembrando a mãe doente (referência biográfica), no milagroso carnaval que lhe permitiu fantasiar-se com as sobras de papel crepom rosa do figurino da amiga. Qualquer leitor independente é capaz de impactar-se com os instantes de alegria roubada do assombro de ter uma mãe doente em casa, em um momento que era para ser feliz – só que não. Sensibilidade a partir de relances. A leitura de Clarice é mais do que um desafio intelectual, é uma experiência emocional inusitada. Eis um trecho do belíssimo conto, repleto de um agridoce que é bem a marca destes textos reunidos em Felicidade clandestina, publicado pela primeira vez em 1971.
Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmárcia. (…) fui, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava. Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-se. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. É, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina.
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Nos contos mais tardios, Clarice Lispector se aproximou da primeira pessoa de forma diferente; não é mais o “eu” da infância, como nas histórias reunidas em Felicidade clandestina, mas o “eu” fragmentado, movediço, dos escritos não coesos que rumam sem desfecho, como no texto “É para lá que eu vou”, no qual a própria definição de gênero entra em pânico. Mais perto da última década de vida/criação, Clarice faz ruir as estruturas – “Gêneros não me interessam mais”, escreve.
São estes apenas alguns exemplos de textos que servem como um convite para quem ainda não entrou no mundo de Clarice – ou por falta de tempo, medo ou reticências.
O culto às frases também faz parte do jogo de leitura com Clarice. As frases que ela realmente escreveu, diga-se de passagem. São lampejos filosóficos que podem ser incandescentes mesmo fora de um contexto, mas é preciso que se busque a fonte para melhor aproveitá-los. Estou de volta ao estrelato de Macabéa e de lá pinço uma das mais belas frases da autora: “Eu vou ter tanta saudade de mim quando morrer”.
O pensamento soa estranho, quase inadequado à personagem, vindo de alguém que mal consegue estabelecer um diálogo que faça sentido. Tem-se a impressão de que, em vários momentos, Clarice empresta a Macabéa o que Rodrigo lhe toma.
Se não tiver coragem que não se entre – escreveu Clarice. De fato, os textos da autora talvez exijam o esforço do mergulho, mesmo os mais leves, pois despertam no leitor o mergulho em si mesmos ao mesmo tempo em que acendem sentimentos e reflexões imprevistos. Para quem ainda não se aventurou, deixo uma dica: comece pelo fim, entrando nas páginas onde Clarice deu seu último grito-respiração: Macabéa, em A hora da estrela. Boa efeméride.
O ensaio “O direito à efeméride” foi publicado originalmente na Edição Clarice Lispector da Revista Recorte Lírico.
Claudia Nina é jornalista e escritora, doutora em Letras pela Universidade de Utrecht com a tese “A palavra usurpada”, sobre a obra de Clarice Lispector, publicada pela Editora da PUC-RS em 2004. É autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a Lamparina, A misteriosa mansão do misterioso Senhor Lam, A Repolheira, ilustrado pela espanhola Raquel Diaz Reguera, e Ana-Centopeia (RHJ), de 2020.
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