Novidade Transmidiática em Algo Antigo, de Arnaldo Antunes

Como poeta, músico, artista plástico e performer, Arnaldo Antunes transita por várias artes, a fim de subverter a noção convencional de fronteira e promover cruzamentos que possibilitam inovações constantes. O escritor já assinou projetos multimidiáticos, lançados nos anos 1990, razão pela qual, hoje, a transmidialidade revela-se como uma opção natural. Embora os teóricos apresentem conceitos divergentes a respeito de multimidialidade, entende-se que a definição de Claus Clüver é a mais adequada. Para esse estudioso, uma obra multimídia é feita de “textos separáveis e separadamente coerentes, compostos em mídias diferentes” (CLÜVER, 2011, p. 15). Quanto a esse conceito, é importante ressaltar que o teórico estabelece uma diferença entre os processos mixed media e multimidiático: enquanto a multimidialidade caracteriza-se pela autonomia das mídias envolvidas no projeto, um processo mixed media requer unidade, porque abrange “signos complexos em mídias diferentes, que não alcançariam coerência ou autossuficiência fora daquele contexto” (CLÜVER, 2011, p. 15). 

Portanto, os vídeos feitos com base nos poemas do livro Algo antigo (2021) (Fig. 1) filiam-se a essa segunda categoria, já que, como clipes, esses textos envolvem literatura, música e fotografia — artes que se combinam para a criação de um único produto. Sob esse viés, os projetos de Antunes que reúnem livro, CD e fita VHS, por exemplo, atendem ao critério mencionado pelo pesquisador norte-americano. 

Novidade Transmidiática em Algo Antigo, de Arnaldo Antunes
Figura 1: Capa do livro Algo antigo. Imagem disponível em:
https://www.amazon.com.br/Algo-antigo-Arnaldo-Antunes/dp/6559210170

Diferentemente das obras multimidiáticas, a transmidialidade, de acordo com o teórico sueco Lars Elleström, “é uma perspectiva analítica” que permite “uma perspectiva sincrônica, em termos de combinação e integração, e também […] uma perspectiva diacrônica, em termos de midiação e transformação” (ELLESTRÖM, 2017, p. 178). Nesse sentido, quanto à diacronia, a transmidialidade pode corresponder ao processo de adaptação, de maneira a possibilitar que o autor/adaptador seja também criador e possa ultrapassar os limites da obra-base, a título de experimentação estética. Portanto, na transformação dos poemas em vídeos, Arnaldo Antunes migra da literatura para o audiovisual e para a computação gráfica, transição que propicia a combinação de mídias em um único texto, pelo fato de a mídia digital, sobretudo se for considerada a influência da Internet, apresentar uma tendência natural à convergência e à multiplicidade.

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No que se refere ao aspecto sincrônico, a transmídia não admite que os objetos sejam independentes ou autônomos. É preciso que eles estejam acessíveis ao público simultaneamente, em diferentes suportes e plataformas, e esse processo, nas obras de Arnaldo Antunes analisadas neste artigo, compreende poemas e vídeos, disponíveis, respectivamente, no livro impresso e no canal oficial do artista, no YouTube. Portanto, nesse contexto, forma-se uma rede, na qual se multiplicam suportes, gêneros textuais e, consequentemente, linguagens e recursos: “Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor” (JENKINS, 2013, p. 141). O resultado é um movimento de expansão, quase em uma perspectiva panorâmica. Em suma, a “transmídia trabalha para atrair múltiplas clientelas, alterando um pouco o tom do conteúdo de acordo com a mídia” (JENKINS, 2013, p. 142).

Aliás, de maneira a consolidar essa visão globalizante de suas criações, Arnaldo Antunes, em conversa com a autora e cantora Adriana Calcanhotto, por ocasião do lançamento do livro Algo antigo, afirmou que não costuma separar as mídias. Segundo ele, mesmo quando está produzindo um vídeo, faz questão de verificar a disposição das palavras, imprimindo a imagem que aparece na tela. Do mesmo modo, no livro impresso, o autor utiliza caligrafias, tipo de arte visual que privilegia a letra manuscrita, levando em conta o traçado, o material usado e a geometria. Em alguns casos, experimentos com diferentes formas transformam a palavra em imagem. A criação é feita no papel, mas com auxílio de recursos de computação gráfica, para distorcer as imagens, usando o Photoshop (COMPANHIA DAS LETRAS, 2021). 

No mesmo evento, o escritor confessou que há casos em que ele não sabe mais dizer qual foi a mídia usada no texto-fonte: era música que virou poema ou eram versos que depois foram musicados? Comentando esse processo criativo, a cantora aventou a hipótese de que isso é resultado de o escritor não estabelecer fronteiras entre as diferentes mídias (COMPANHIA DAS LETRAS, 2021). A partir do momento em que as artes e as mídias são colocadas no mesmo território, privilegia-se a confluência e, nesse quesito, destacam-se as hipermídias, como o computador e o smartphone, essenciais hoje em dia. Segundo Lúcia Santaella, esse tipo de suporte privilegia uma “estrutura complexa alinear da informação”, que ultrapassa os limites da escrita, pois permite “acrescentar aos textos não apenas os mais diversos grafismos (símbolos matemáticos, notações, diagramas, figuras), mas também todas as espécies de elementos audiovisuais (voz, música, sons, imagens fixas e animadas)” (SANTAELLA, 2008, p. 63).

Nas hipermídias, conteúdos, gêneros textuais e expressões artísticas convergem, favorecidos pela Internet, que possibilita leituras em abas e em telas simultâneas ou alternadas. “A narrativa transmídia refere-se a uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias” (JENKINS, 2013, p. 48) e, por essa razão, alguns veículos de comunicação referem-se à transmidialidade como “entretenimento 360º” (JENKINS, 2013, p. 189).

No entanto, o processo transmidiático não implica duplicação. Não basta, por exemplo, que um livro impresso seja digitalizado e compartilhado na web. Em vez disso, a transmidialidade exige recriação, para que um texto seja enriquecido e alterado, em decorrência das características específicas das outras plataformas em que o conteúdo será publicado. É preciso fazer uma reestruturação, cujo nível varia, a fim de adaptar o produto à nova mídia e ao novo público. Consequentemente, a mudança no meio de divulgação permite que o autor atinja mais leitores, de perfis diferenciados. Competências e habilidades também variam e isso determina a escolha da mídia que dará acesso à arte e à literatura, especificamente: “O surgimento das culturas de conhecimento reflete parcialmente as exigências que esses textos impõem sobre os consumidores, mas reflete também as exigências que os consumidores impõem às mídias (o apetite por complexidade, […] o desejo de reescrever histórias)” (JENKINS, 2013, p. 351).

Além disso, ressalte-se que, em nosso dia a dia, a Internet, as hipermídias e as mídias digitais desempenham papel fundamental. Por isso, o fato de as artes em geral, com destaque para a literatura, tentarem se inserir nesse novo contexto demonstra desejo e capacidade de evolução, transcendendo formas e limites.


Excerto do artigo “Transmidialidade e reescrita criativa em Algo antigo, de Arnaldo Antunes”, publicado na revista Soletras (UERJ), n. 46, 2023, p. 53-77.

REFERÊNCIAS:

ANTUNES, A. Algo antigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 

_____. Algo antigo. Arnaldo Antunes [Parte 1]. Canal oficial do artista Arnaldo Antunes, [s. l.], 2022a. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G7Dz_-2d4Eo. Acesso em: 15 mai. 2022a.

_____. Algo antigo. Arnaldo Antunes [Parte 2]. Canal oficial do artista Arnaldo Antunes, [s. l.], 2022b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QvWaMW4x8_4. Acesso em: 15 mai. 2022b.

CLÜVER, C. Intermidialidade. Pós, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 8-23, 2011.

COMPANHIA DAS LETRAS. Lançamento do livro “Algo antigo”, com Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto. Companhia das Letras, São Paulo, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Mk8ERWEKgmA. Acesso em: 12 nov. 2021.

ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2017.

JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2013. 

SANTAELLA, L. O novo estatuto do texto nos ambientes de hipermídia. In: SIGNORINI, I. (org.). (Re)discutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola, 2008. p. 47-72.

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