A Conclamação no Filme RRR: Revolta, Rebelião e Revolução

Verônica Daniel Kobs

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RRR: Revolta, rebelião, revolução (IND, 2022), dirigido por S. S. Rajamouli, dá voz aos oprimidos e tenta mostrar que a superação é sempre uma possibilidade. No ano passado, o longa venceu nas seguintes categorias: Melhor Diretor (New York Film Critics Ciecle Award); Melhor Filme Estrangeiro (Critics’ Choice Award); Menção Honrosa (Satellite Award); e Melhor Canção Original (Oscar). 

A produção, ao estilo de Bollywood, alia a energia contagiante do elenco à alegria do público. A plateia indiana é um espetáculo à parte, motivada pelos números musicais e pelos encontros/desencontros da história.

Quanto ao conteúdo, RRR  conta a história da Índia em 1920, dando destaque à colonização inglesa. No entanto, os oprimidos mostram tenacidade, resistência e desejo de vingança depois que os homens do governador Scott Buxton (Ryan Stevenson), representante da Inglaterra no território indiano, sequestram uma criança em uma tribo, nos arredores da cidade. 

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Diante disso, a tribo confia a Komaram Bheem (Nandamuri Taraka Rama Rao Jr.) a missão de ir à cidade e resgatar a garota. A cena a seguir representa o enfrentamento dos opressores, já que Komaram tenta derrotar um tigre, que serve de metáfora ao poder hegemônico, no filme  representado pelo governador Scott (Fig. 1).

A Conclamação no Filme RRR: Revolta, Rebelião e Revolução
Figura 1:Bheem em combate com um tigre
Disponível em: <https://personaunesp.com.br/rrr-critica/>

O tom de nacionalismo é claro no filme, que exalta as cores da bandeira indiana original, remetendo ao ano de 1906 e à cultura autóctone. Embora a História já tenha sido escrita, no enredo a tribo tenta superar o complexo de colonizado, assumindo as rédeas do próprio destino. Como consequência, a ordem é restabelecida: a menina volta para a tribo e o governador Scott é derrotado. 

No entanto, para chegar à mais alta instância do poder, o destino acaba juntando um representante do povo, Bheem, e um policial, Ramaraju, que serve como ponte para o governador e para o alto escalão militar. Além disso, uma mulher, Jennifer (Olivia Morris), também se junta a Bheem. Ela é outra facilitadora dos planos da tribo. Além disso, ela é branca, rica e frequenta a mansão do governador. No entanto, ela simpatiza com o herói indiano desde o início da história. Quanto à relação de Bheem e Ramaraju, os caminhos deles se cruzaram em uma tentativa de salvamento de um garoto, empreitada protagonizada de modo espetacular (Fig. 2):

A Conclamação no Filme RRR: Revolta, Rebelião e Revolução 2
Figura 2: Bheem e Ramaraju na cena do salvamento
Disponível em: <https://revistacontinente.com.br/edicoes/262/rrr–revolta–rebeliao–revolucao>

A partir daí, os dois se inserem em locais e eventos frequentados pela elite, para tentar minar o sistema por dentro. De início, principalmente Komaram Bheem sofre preconceito da elite branca, mas Alluri Sita Ramaraju sai em defesa de seu parceiro, revertendo a humilhação em algo positivo, fazendo prevalecer as vantagens, e não as derrotas (Fig. 3). 

A Conclamação no Filme RRR: Revolta, Rebelião e Revolução 3
Figura 3: Bheem e Ramaraju dançando “Naatu naatu”, música vencedora do Oscar 
Disponível em: <https://scroll.in/reel/1041879/the-story-behind-the-award-winning-song-naatu-naatu-from-rrr>

Apesar de os protagonistas terem uma base real, a trama é fictícia, pois Bheem e Ramaraju nunca conviveram. Entretanto, esses personagens históricos compartilharam o mesmo contexto cultural por 20 anos. Cada um a seu modo foi destaque na liderança de movimentos que visavam combater o império britânico. Por isso, no filme, como demonstra a cena acima, Bheem e Ramaraju, ao som da música “Naatu naatu”, representam o triunfo dos oprimidos na cidade. Ramaraju não se deixa dominar por seu cargo de subalterno do governo inglês na colônia indiana, assim como Bheem, um campesino, colocado à margem do centro, não se deixa afastar pelas fronteiras, nem pelo poder hegemônico.

Dessa forma, Bheem e Ramaraju encaixam-se no que Glauber Rocha classificava como famintos (ou oprimidos): “[…] o comportamento exato de um faminto é a violência e a violência de um faminto não é primitivismo” (ROCHA, 2008). Portanto, os desejos dos protagonistas de RRR alinham-se a este princípio do Cinema Novo:

[...] uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizada sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo o horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino. (ROCHA, 2008)

Entretanto, é preciso destacar que a ideologia de Glauber Rocha não era um estímulo à barbárie. Tratava-se, sim, de uma atitude desalienante e crítica (GOMES, 1980), calcada na observação atenta da sociedade e das relações complexas que se estabelecem dentro dela, como consequência do poder hegemônico:

[...] essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e transformação. (ROCHA, 2008)

Estudioso do Cinema Novo, Ismail Xavier, no livro Sertão-mar, destina um capítulo inteiro à análise da estética da violência, na obra de Glauber Rocha e na cultura brasileira, desde 1950. O crítico considera a violência como “‘possibilidade única’ do colonizado frente à dominação a ele imposta, num tipo de argumentação que toma como base a dialética do senhor/escravo” (XAVIER, 1983, p. 154, grifo no original). Dessa forma, “a afirmação do eu se dá pela negação do outro” (XAVIER, 1983, p. 154). Assim, fica claro que é necessário um ponto de virada, para que as revoltas sejam ouvidos, em favor do protagonismo. Nesse sentido, além de RRR, podem ser citadas produções cinematográficas anteriores, as quais tematizaram a mesma questão, de dominação e revolta: Bacurau (BRA, 2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles; Parasita (KOR, 2019), de Bong Joon-ho; e Glass Onion (EUA, 2022), de Rian Johnson.

Embora essas produções coincidam na retomada de uma atitude revolucionária, estudos relativamente recentes apontam para a impossibilidade disso, na sociedade contemporânea. 

É importante distinguir entre um poder que impõe e um poder que estabiliza. Hoje, o poder que estabiliza o sistema assume um disfarce amigável e smart, tornando-se invisível e inatacável. O sujeito submetido nem sequer tem consciência da sua submissão. O sujeito pensa-se livre. Esta técnica de dominação neutraliza a resistência de modo eficaz. A dominação que reprime e ataca a liberdade não é estável. Por isso o regime neoliberal é tão estável [...]. (HAN, 2023)

 Portanto, pode-se afirmar que a cortina de fumaça criada pelo regime é muito similar àquela instaurada pelo consumismo. Para os mais desavisados, o consumo é um indicativo de liberdade. Ledo engano! Afinal, consumimos os produtos que nos são ofertados. Onde está a liberdade, então, se a escolha restringe-se àquilo que já foi determinado por alguém?

Dessa forma, o filme RRR, antes de ser uma conclamação, é uma tentativa de compensar a falta de criticidade. Antes de querer lutar, é preciso se dar conta das relações de poder que foram instauradas, às vezes aos berros e às vezes de modo silencioso e sorrateiro. 


Texto originalmente publicado no blog Interartes, em 2023.

REFERÊNCIAS:

GOMES, P. E. de S. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

HAN, B.-C. Por que é que hoje nenhuma revolução é possível? Disponível em: <https://www.revistapunkto.com/2015/12/porque-e-que-hoje-nenhuma-revolucao-e.html>. Acesso em: 8 out. 2023.

ROCHA, G. Uma estética da fome. Disponível em: <http://tropicalia.uol.com.br/sit

e/internas/leituras_gg_cinenovo.php>. Acesso em: 24 mai. 2008.

RRR: Revolta, rebelião, revolução. Direção de S. S. Rajamouli. IND: DVV Entertainments; Lyca Productions, Pen Studios e Netflix, 2022. 1 DVD (187 min); son.

XAVIER, I. Sertão-mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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