Sentidos da idealização romântica na obra Inocência, de Visconde de Taunay
O romance Inocência é uma produção de Visconde de Taunay, do período de excitação e declínio do romantismo brasileiro. Publicado em 1872, Inocência tornou-se o maior romance romântico regionalista de nosso romantismo. Essa fase regionalista dos românticos brasileiros permeou não só a obra do Visconde de Taunay, mas também a de autores como Bernardo Guimarães (1827 – 1884), Franklin Távora (1842 – 1888), entre outros “menores”. O enredo da obra de Taunay não será o principal objeto aqui analisado, mas sim o caráter idealizador, comumente nas histórias do período em questão. Não obstante precisamos esclarecer e levantar alguns aspectos, elementos e personagens desse enredo para que as questões sejam elucidadas com minudência.
A história se passa no interior do estado de Mato Grosso do Sul, destacando-se, principalmente, a natureza, a fala e os costumes do povo local, o que aqui já se caracteriza forte idealização romântica na obra; primeiro pelo fato da busca por uma identidade nacional – que é um dos pilares do romantismo brasileiro –, e segundo pelo aspecto intrinsecamente popular, bucólico, cor local e outros tantos inerentes aos poetas que produziram literatura nesse período no Brasil.
Os primeiros capítulos do romance narram, de forma extremamente descritiva, a natureza de Santana do Parnaíba, e nesse quesito se evidencia dois fatos importantes; primeiro o fator de “cor local”, quando o escritor utiliza de aspectos descritivos – tanto da natureza, dos costumes e da história – para valorizar o que geralmente encontra-se no regionalismo literário (Victor Hugo defende fortemente essa ideia no prefácio de sua peça teatral “Cromwell”); segundo pelo fato do declínio do romantismo brasileiro, como já citado aqui, quando os autores já antecipavam, de certa forma, características do período subsequente, nesse caso o Realismo.
Outro grande elemento que compõe o caráter idealizador na trama é a questão das relações entre as personagens e o que isso representa para a sociedade e os costumes da época. Inocência, moça simples, meiga e bela contrasta com o seu pai, Pereira, de comportamento rude e autoritário, cria sua filha sozinho e sob uma perspectiva altamente conservadora. Aqui já temos fatores de forte idealização romântica, tanto na questão da Inocência, que está caracterizada como “mulher anjo”, aquela cheia de virtudes, casta, que se aproxima, em muito, ao divino.
Essa é uma das principais virtudes femininas do período romântico, que se valia do fato dos romances serem lidos nos salões – como salienta o romântico português Camilo Castelo Branco em “Amor de Perdição” –; quando não era com essa característica, a mulher demônio, que leva à perdição. Em segundo plano nessa relação Inocência/Pereira está a figura do pai, pertencente a uma sociedade moralmente conservadora e que baseia a criação da sua filha em um costume totalmente patriarcal.
Esse patriarcalismo também figura como uma das mais significantes características do movimento romântico brasileiro, estando intrinsecamente na literatura canônica da época. Esse recurso está diretamente associado às questões dogmáticas do Cristianismo, que conduzia os costumes religiosos do povo, sobretudo da burguesia, que estava em ascensão após a Revolução Francesa, e é categoricamente utilizado pelos românticos para salientar tanto a magnitude da mulher enquanto recatada e do lar, mas também para dar relevância à família, e essa está representada principalmente pelo pai.
Ainda falando sobre relações, a doença de Inocência – que já remete à fragilidade da personagem, que também é uma “arma” da produção literária do período romântico – suscita na aparição de Cirino (o farmacêutico que se passa de doutor), que conhece Pereira e logo é convidado a medicar Inocência, e ao conhecê-la apaixona-se à primeira vista.
Já é de conhecimento comum que a paixão no primeiro encontro é absolutamente uma questão de idealização romântica, não à toa, o romance Inocência é conhecido como o “Romeu e Julieta do sertão”. A obra do inglês William Shakespeare, apesar de não se enquadrar no movimento romântico, é costumeiramente inserida no período renascentista, que imitava a cultura greco-romana; e o romantismo, saudosista por natureza, também rememora esses elementos clássicos, intensificando a questão idealizadora dos poetas da maior parte do século XIX no Brasil.
A introdução do personagem Meyer, naturalista alemão que embarca no Brasil para conhecer novas espécies de insetos, apresenta outras características do estereótipo idealizador romântico. Ao chegar ao sertão mato-grossense, Meyer traz consigo uma carta de Chiquinho (irmão mais velho de Pereira), ganhando a simpatia do anfitrião, que concede hospitalidade. Quando o turista conhece Inocência, fica vislumbrado com tamanha beleza, como o próprio Taunay descreve: “cílios sedosos, nariz fino e um bocadinho arqueado; a boca pequena e o queixo admiravelmente torneado”; “um colo de fascinada alvura”, espessa cabeleira, negra como o âmago da cabiúna” (pág 51).
Mais uma vez o sentido da idealização romântica está latente na obra de Taunay, pois, embora Inocência fosse belíssima, ela estava “condenada” a viver encarcerada, para mais tarde casar-se com Manecão, negociante de gado ao qual o seu pai prometeu-lhe. Essa questão do comprometimento cristão e matrimonial é mais uma qualidade ideológica do período romântico, e a aversão do Pereira ao Meyer, criada após o encontro dele com sua filha, torna ainda mais relevante a proteção patriarcal e engradasse o fator da impossibilidade da mulher anjo ser assediada por algum homem até o dia do seu casamento.
O ponto máximo da identidade idealizadora da obra está na metáfora da borboleta. A união de dois elementos endeusados pelos românticos em um contexto extremamente peculiar e significativo revela o maior sentido que se imagina em uma obra do período. Os elementos, nesse caso, seriam a natureza e a mulher. Meyer, ao encontrar no sertão brasileiro uma espécie de borboleta tão bonita, única e supostamente escondida, logo resolve batizá-la de forma homônima à personagem principal do romance de Taunay. Essa fixação exacerbada do poeta romântico é comum, na maioria das vezes usada para o escapismo na geração ultrarromântica, mas aqui é colocada para exaltação.
Ao passo que a história ganha os seus desfechos, os personagens descobrem os segredos uns dos outros, chega-se a outro momento crucial da construção de sentido idealizador em Inocência. Cirino e Inocência, impossibilitados de viver esse grande amor relâmpago, aproximam-se de um drama irreversível, a morte. Cirino é morto por Manecão e, por consequência disso, Inocência também morre, tamanha tristeza lhe assola.
O elemento do trágico, utilizado no desfecho da história, apresenta diversas características românticas. Além de levantar um aspecto clássico, a tragédia da morte das personagens centrais funciona como artifício educativo à sociedade da época, que “aprende” com o romance a não fugir dos compromissos impostos pela família, visto que essa era soberana e representava as ações benfeitoras.
O romance Inocência é repleto de estereótipos idealizadores do contexto romântico. Isso se caracteriza em quase todos os momentos do desenrolar da trama, desde a ingenuidade da personagem Inocência, contrastando até com os problemas de jogos de azar do Cirino, até o fim trágico da história. A beleza natural brasileira, tanto na borboleta quanto na mulher idealizada da obra, está a todo o tempo em primeiro plano na obra. Apesar de a obra ser publicada nos últimos anos do Romantismo e já “flertar” com aspectos realistas, o autor mantém elementos fundamentais para categorizar o livro nas demandas românticas.
A tensão entre o mundo urbano e o rural, a voz feminina muitas vezes presente nas opiniões de Meyer e do Cirino e o “gran finale” da beleza natural brasileira sendo consagrada na Europa simbolizam e fortalecem o caráter e o sentido da idealização romântica praticada por Visconde de Taunay em sua obra regionalista.