As Iracemas do cinema
As versões cinematográficas de Iracema
A primeira adaptação fílmica do romance de Alencar foi intitulada Iracema, a virgem dos lábios de mel, dirigida por Carlos Coimbra e lançada em 1979. Considerado pela crítica como acadêmica, pela fidelidade extrema ao texto literário, o filme não teve grande impacto. Além da falta de novidades, a versão de Carlos Coimbra é acrítica, já que desconsidera as ausências que, desde o Modernismo, Mário de Andrade e outros apontaram como falhas no projeto literário de Alencar, sobretudo nas obras indianistas. Atendendo às demandas do mercado (e da política da época), Coimbra escolheu Helena Ramos para ser Iracema. A atriz, conhecida como a rainha das pornochanchadas, foi a responsável por uma sensualidade extrema, o que acabou tirando todo o romantismo do texto alencariano. É evidente que alterações são bem-vindas nas adaptações, e até mesmo necessárias, pois o novo produto deve refletir as características de seu tempo. Entretanto, Coimbra havia escolhido o caminho da fidelidade e, por isso, alterar de maneira tão drástica o perfil da protagonista representou um grande problema, ocasionando uma espécie de desajuste no projeto do diretor. Além disso, pela falta de mudanças o filme não apenas pecou pela acriticidade, mas também pelo anacronismo em relação à época de sua produção. Tratava-se de uma versão cinematográfica para um texto literário clássico, publicado um século antes, e essa distância temporal era uma característica imperativa. O diretor, porém, abriu mão de atualizar o texto de Alencar. Uma hipótese que surge, para tentar explicar a extrema fidelidade de Coimbra em relação ao texto romântico, está intrinsecamente ligada à época em que o filme foi produzido. Luiz Carlos Merten, no livro Carlos Coimbra — Um homem raro, escreve que o diretor não optou por Helena Ramos por simples apelação, mas pensando nas cenas de nudez. O argumento do diretor, no entanto, não é convincente, porque o padrão de beleza que a atriz representava, na época, não condizia com a realidade da mulher indígena, o que artificializava a personagem. Além disso, Merten (2004) menciona que, por causa do filme, Coimbra foi acusado de fazer o jogo dos militares e de, inclusive, ajudar na censura de Iracema, uma transa amazônica, de Bodanzky, filme que é o extremo oposto da versão feita por Coimbra e que, por essa razão, foi proibido durante anos.
A ideia de Bodanzky surgiu em 1968, com uma viagem à Amazônia, para fazer uma reportagem, e, depois de pronto, nos meados da década de 1970, o filme foi proibido. A liberação para o lançamento no circuito comercial veio apenas em 1981 e, mesmo tendo se passado tanto tempo, o filme permanecia atual em suas críticas:
Retratar a transamazônica de maneira realista, em 1974, representou um grande risco. As consequências foram anos de censura e de luta incessante para fazer o filme chegar ao público a que se sempre se destinara. Iracema mostra, hoje, uma realidade que permanece tão urgente, senão mais, quanto o era na época, quando a estrada ainda simbolizava um sonho do “Brasil Grande”. (IRACEMA, 1981, grifo no original)
Sem a ousadia de Bodanzky, Coimbra fez, no cinema, um resumo do romance de Alencar, o que resultou também em uma visão “sacralizante” do Brasil, mas totalmente anacrônica, já que era o ano de 1979, depois dos adventos do Modernismo e do Cinema Novo, e, portanto, do lançamento de obras que caminharam rumo à “dessacralização”, como Macunaíma, por exemplo. Fiel na sequência temporal e nas falas, Coimbra vai recortando e colando o texto de Alencar, de modo a condensar o romance em mais ou menos uma hora e meia de filme. A idealização (da mulher e da convivência entre índios e portugueses), de modo muito similar ao que ocorre no romance, é também a tônica do filme. Há apenas uma referência, mínima, de Irapuã, contra os estrangeiros, considerados invasores. Esse trecho, porém, passa quase despercebido, diante do imenso destaque que se dá à fauna e à flora da região, mostrando um cenário natural exuberante, em conformidade com a visão dos estrangeiros em geral e dos cronistas, para os quais o Brasil parece simbolizar o paraíso perdido, rico em exotismo. Para mostrar a natureza, o plano geral é usado abundantemente e, na parte da flora, há destaque para as palmeiras, que também foram enfatizadas por Gonçalves Dias.
A sexualidade também é bem explorada. Martim, representado, no filme, por Tony Correa, observa Iracema banhando-se nas águas do recanto secreto, em que ela guardava o segredo da jurema. Sob o efeito do alucinógeno que ele havia bebido, ele a deseja ardentemente, o que alcança uma representação bastante caricatural, e eles ficam juntos, na areia da praia, onde são premiados com uma chuva de flores feita pelo vento. Importante também é citar o figurino, sobretudo o de Iracema, que usa uma tanga bastante estilizada, distanciando-se da realidade indígena e contribuindo para a exploração erótica.
Dando continuidade ao critério da fidelidade ao texto literário, Coimbra retrata também o bom relacionamento ente portugueses e indígenas. Martim, como no livro, é bem recebido pelos índios. Seu único entrave é seu rival na disputa pelo amor de Iracema. Há, inclusive, um momento em que Martim se culpa por ter causado tantas mortes, depois de um conflito sangrento entre os grupos pitiguara e tabajara. O português lamenta todas as mortes, sobretudo a de Caubi, momento em que, no filme, as cabeças empaladas e os rostos dos mortos são mostrados em close. Compartilhando as mesmas falhas de Alencar, Coimbra, em nenhum momento, mostra hostilidade dos índios para com o branco. Ao contrário disso, o elemento autóctone se submete totalmente ao estrangeiro. Caubi e Iracema sacrificam-se por Martim, enquanto ao português cabe apenas a pseudoimersão nos costumes indígenas, representada, no filme e no livro, pelo ritual de “transformação” do personagem, que adota um nome indígena e tem o corpo pintado, e pelo combate ao lado dos índios, manuseando o arco e a flecha.
Cabem, aqui, ao filme de Coimbra, as mesmas críticas de Bernd, que enfatiza a submissão como traço antinacionalista e de desvalorização, em favor da supervalorização do outro, não autóctone, mas mais poderoso, o que faz com que o estrangeiro seja encarado como dominante quase que naturalmente. Os aspectos da cultura indígena que são ressaltados no filme, como músicas e alguns rituais, são, como a menção de Irapuã contra os estrangeiros, apagadas pela dominação do europeu, assim como ocorre no livro.
Fazendo o contrário de Carlos Coimbra, Bodanzky aproveita o texto de Alencar para tornar mais clara a metáfora representada por Iracema: de uma terra virgem, recém-conquistada, usada e explorada pelo branco. Longe da visão do próprio Alencar e também de Guilherme de Almeida, que prefacia a edição de 1941 do romance, Bodanzky, já influenciado pela visão dessacralizante da relação colonizador/colonizado e da formação do povo brasileiro, para não falar da distância temporal em relação à obra de Alencar, o que dá maior amplitude à criticidade, mostra as consequências ruins da conquista e da exploração do território brasileiro. Em se tratando da construção da transamazônica, o questionamento central é o progresso. A construção da estrada simbolizou mesmo uma evolução? Qual foi o preço pago por esse progresso? Tais questionamentos opõem, no filme, desde o início, Tião Brasil Grande, personagem de Paulo César Pereio, que representa o estrangeiro com absoluta crença no progresso do país, a falas como “Ninguém segura esse país” (IRACEMA, 1981) e também à própria Iracema, personagem de Edna de Cássia, uma índia que representa o elemento nativo, que acredita em um futuro melhor, mas que não o encontra.
No início do filme, Iracema está indo para a cidade, mudança que será responsável pelo início da degradação do personagem, já que, logo após chegar ao centro, ela já aparece vestida de modo mais urbano, maquiada, fumando e em companhia de uma prostituta, pronta para fazer programas. Na visão de Bodanzky, o Brasil, representado por Iracema, nunca deixou de se submeter ao branco/estrangeiro, que, por sua vez, simboliza os países dominantes (especialmente Portugal, França e Estados Unidos). Essa metáfora, no filme, relativiza a autonomia obtida pela independência política, já que o país, a exemplo de outras colônias, parece ter conservado a mentalidade de colonizado, já que sempre se deixou influenciar pela moda do exterior.
Tião, como está explícito na continuação de seu nome, “Brasil Grande”, simboliza a voz oficial em relação à construção da transamazônica. Pensando exclusivamente no dinheiro, capitalista ao extremo, o personagem diz: “Onde tem madeira tem dinheiro. Só não se dá bem nesse país quem não sabe se virar” (IRACEMA, 1981). Sua ideologia se opõe à de Dr. Antônio, personagem com uma visão de esquerda, com preocupações mais ecológicas, e que, na época, representava o discurso das minorias. A voz de Tião, entretanto, sobrepõe-se à de Dr. Antônio, porque concretiza a visão hegemônica e que, ao mesmo tempo, resgata a visão dos portugueses em relação à grande riqueza natural de nosso território, em 1500.
No filme, o corte de árvores é justificado com a geração de muitos empregos diretos. Além disso, um dos negociantes de madeira fala: “Isso é uma mina de ouro que precisa ser explorada” (IRACEMA, 1981), discurso que parece ecoar desde o século XVI e que hoje já virou clichê quando o assunto é Amazônia. Luciana Penna, no artigo “A civilização do vazio”, pontua essa característica no perfil de Tião:
Partindo de um arremedo de história, Iracema vai seguindo um percurso de errância pelo espaço geográfico e […] se valendo da ficção para construir sentidos que só se realizam em toda sua potência na esfera do documentário. Um método que incorpora o acaso, que prospera nele. […]. Tião há de se encontrar e se separar da jovem Iracema por duas vezes nesse percurso, marcando uma passagem de tempo, e um antes e depois. Ao se apresentar, ele justifica a alcunha: “Andei o Brasil todo e acredito no futuro do meu país”. […]. A personagem de Pereio representa a voz oficial, um pouco como o Martim do romance de Alencar, ambos defensores de um projeto colonizador e exploratório dessa América virgem […]. (PENNA, 2007)
Relacionadas à exploração indiscriminada da madeira, as queimadas também são mostradas no filme. Há, inclusive, uma longa sequência, de mais de um minuto, que mostra Tião e Iracema em viagem, no caminhão, que a protagonista vê, pela janela do veículo, o cenário desolador das queimadas à beira da estrada, que ressalta as árvores secas e sem vida, já raras na paisagem.
Para completar a ironia que faz o filme de Bodanzky, em uma das placas que os personagens veem pela estrada está escrito: “Visite o armazém Brasil” (IRACEMA, 1981). Isso mostra a ingenuidade, a inferioridade e a dependência do país em relação ao capital estrangeiro, afinal, sempre os países menos desenvolvidos tendem a usar como modelo os de maior projeção no ranking mundial. Entretanto, percebendo a dominação estrangeira, vem a reação à invasão, o que representa quase um paradoxo: a presença do outro é desejada, em um primeiro momento, e, logo em seguida, ao se constatar que o estrangeiro significa também ameaça, e não só progresso, tenta-se bani-lo. Mesmo mudando significativamente o tom do texto alencariano, Bodanzky conserva ideias e ações que já eram bastante comuns no século XVI, época retratada em Iracema: a exploração de madeira (na época, do pau-brasil) e o trabalho escravo (no filme, em vez de índios e negros, pessoas pobres são recrutadas e obrigadas a trabalhar, já que seus “donos” retêm seus documentos). Nesses dois aspectos, que investem na denúncia, o filme ultrapassa a fronteira da ficção e cai no terreno do documentário. Para isso, as falas contribuem enormemente, já que, segundo o próprio diretor, elas não eram escritas ou ensaiadas, mas surgiam do improviso. Bodanzky interferia o mínimo possível, para obter um resultado mais natural e próximo da realidade, característica devida a sua experiência como jornalista.
Ao mesmo tempo em que revitaliza questões como as apresentadas acima, Bodanzky inclui, no filme, outras, mais contemporâneas, que se fazem presentes por meio de avisos espalhados pela estrada: “Não compre terra sem antes consultar o INCRA” (IRACEMA, 1981). No que diz respeito à desconstrução da visão paternalista e romântica que Alencar imprime em seu romance, cabe ressaltar a cena do banho. Bodanzky, como Coimbra, também enfatiza o apelo sexual, porque faz os personagens negociarem o michê. No acordo, Tião pechincha o preço proposto inicialmente, por Iracema, que acaba por aceitar a oferta, depois de alguma hesitação. Além disso, a única coisa que lembra vagamente o cenário romântico de Alencar é o canto insistente de um pássaro, ao longe. No geral, o cenário é de devastação, com placas do INCRA, barulhos de motosserras derrubando árvores, etc., ou seja, Bodanzky usa o texto de Alencar para dar sua interpretação diante da submissão do índio (e da natureza) ao estrangeiro e da degradação desencadeada por esse consórcio.
Além disso, durante o banho, Tião, referindo-se à maquiagem excessiva que Iracema usa, diz: “Ainda mais uma índia ficar usando isso daí” (IRACEMA, 1981), ao que se segue este diálogo:
— Eu não sou índia, não.
— O que que tu é? Tu é branca?
— Sou.
— Filha de ingrêis?
— De inglês não, mas de brasileiro. (IRACEMA, 1981)
A conversa entre os protagonistas denuncia outro comportamento comum ao brasileiro, em relação à sua origem, já mencionada anteriormente, nas palavras de Antonio Candido. Trata-se de uma vergonha do índio e do negro que compuseram a “raça” brasileira e da consequente busca pela identificação com o elemento dominante. Iracema em nada lembra o passado glorioso do povo indígena. Aliás, no momento em que ela conhece Tião, em uma boate pobre de Belém, a protagonista é humilhada pelo caminhoneiro, que a chama de burra, em uma mesa posicionada estrategicamente ao lado de um painel, que apresenta cenas de indígenas, exímios caçadores, abatendo animais selvagens com o auxílio de enormes lanças.
Para encerrar o processo de desculturação e aculturação, conforme Bernd, Iracema, no filme, é praticamente destruída. Do sonho de viajar o Brasil, conhecendo-o de ponta a ponta, a protagonista é degradada pela prostituição, que a torna mais feia e a deixa sem alguns dentes, tanto é que, no final, Tião a encontra em um prostíbulo de beira de estrada, e mal a reconhece. Interessante ainda é perceber que, enquanto ela aparece em um estado deplorável, Tião, de caminhão novo, está indo para o Acre, agora em busca de gado. Como sinal decisivo da dependência dela em relação a ele, Iracema chega a pedir dinheiro a Tião, mas ele lhe diz não.
A metáfora da prostituição (e não da terra virgem e fértil, conquistada pelo branco, como quis Alencar), dá a Bodanzky condições de potencializar a sua crítica em relação à apropriação do Brasil pelos portugueses e, depois, pelos estrangeiros em geral, e à submissão dos brasileiros aos povos dominantes. Para comprovar isso, basta atentar para o fato de que o destino de Iracema começou a mudar quando ela entrou em contato com o mundo civilizado e com ícones do consumismo, como as marcas estrangeiras.
Comparando as imagens acima, percebe-se que Iracema abriu mão de seus valores e costumes, porque almejava o centro. Ela queria conhecer o Brasil, talvez ganhar o mundo, sonho que era mataforizado pelo hábito de ler fotonovela, em seu tempo livre. Ao propiciar o contato do elemento autóctone com o branco, hegemônico, Bodanzky ilustra a frase pintada no caminhão de Tião: “Do destino ninguém foge” (IRACEMA, 1981), ao mostrar a degradação do Brasil e de Iracema. O país teve sua natureza destruída para que se construísse uma estrada, em nome do progresso. E Iracema partiu para tentar realizar seu sonho, mas acabou abandonada, prostituída, sem dignidade e sem dinheiro, à espera de uma carona que pudesse levá-la um pouco mais longe.
Conclusão
Após breve análise do filme Iracema, uma transa amazônica e de seus antecedentes, vale ressaltar a perspectiva crítica de Jorge Bodanzky sobre a colonização e o complexo do colonizado. Esse tipo de reação, inegavelmente, é fruto do ideário modernista e, para demonstrar isso, ainda que já no final do artigo, fazemos aqui nova comparação. De modo similar a Bodanzky, Nelson Pereira dos Santos, em Como era gostoso o meu francês, resgata, com muito humor, as crônicas escritas pelos viajantes. Utilizando, sobretudo, os escritos de Gândavo, que reforçava muito a brutalidade, a crueldade e o canibalismo dos indígenas, o filme faz jus a essas características, mas como resultado de esperteza dos índios e não de ignorância ou barbárie, como sugeria o cronista. Longe de representar o período heróico ou idílico da relação entre os colonizadores e os indígenas, Nelson Pereira dos Santos apresenta índios preocupados com seu território e, por isso, encaram qualquer estrangeiro como ameaça. Achando que um francês era português, prendem-no e o sentenciam à morte. A desculturação e a aculturação do francês são acentuadas. Se, em Iracema, de Alencar, tais processos deixam o índio em desvantagem e privilegiam o europeu, aqui o francês é desvalorizado. Em algumas cenas, os índios submetem o estrangeiro a atividades próprias das mulheres, como plantar, por exemplo. Além disso, ele recebeu uma índia como esposa, passou a andar nu, usando colares típicos e com o cabelo bem diferente.
A paródia alcança sua plenitude, quando ele aprende a caçar e a pescar com seu dono. Ao inverter o esquema da relação entre dominante e dominado, Nelson Pereira dos Santos, assim como Mário de Andrade e Jorge Bodanzky, opta pela dessacralização, retomando a obra de Alencar, precursora do projeto americano, e, antropofagicamente, suprindo suas lacunas e consertando suas “falhas”. Isso reacende o debate sobre o poder que cada parte detinha: se os portugueses dominavam política e economicamente, os índios, donos da terra, dominavam o território, com as riquezas naturais tão ambicionadas pelos estrangeiros. Além disso, também tinham o espírito guerreiro e de preservação, o que serve de contestação à visão passada no romance alencariano, de que os índios aceitaram as ordens dos europeus sem reagir, apenas porque esses eram superiores economicamente. Outra inversão, que ainda diz respeito ao fato de o índio fazer do francês seu escravo, acontece quando o dono anuncia qual parte do corpo do cativo caberá a cada um dos integrantes da tribo, fazendo uma espécie de divisão, o que aterroriza ainda mais a vítima, momentos antes do ritual.
Como era gostoso o meu francês, tal qual o filme de Bodanzky, vai além da dessacralização e revela perfeita simetria com a ideologia modernista. Prestes a ser devorado, o marido ouve da esposa índia a descrição do ritual que o espera e, aproveitando a ambiguidade do verbo “comer”, eles transam. Depois, a mulher o abate com uma flecha, impedindo-o de fugir com a pólvora que ele tinha roubado da tribo (numa espécie de aproximação cômica com o mito de Prometeu). Apesar da vitória do autóctone e da devoração do francês, o que revela, em 1971, como queriam o Modernismo e o Cinema Novo, desalienação e superação da condição de colônia, algo que parece ter se internalizado no brasileiro, mesmo depois da emancipação política, o filme termina com a denúncia do extermínio dos índios pelos estrangeiros, feita por meio da inserção do relato de Mem de Sá, de 1557, em que esse fala dos conflitos com os indígenas a ponto de não sobrar nenhum tupiniquim vivo. Em seguida, os mortos formam uma grande orla na praia.
Na éra de 1557 veiu o terceiro governador Mem de Sá. Êste sujeitou quasi todo o Brasil, teve guerra com os Indios do Paraguaçú fronteiros da Baía e muito poderosos, em que lhes queimou 160 aldeias, matando muitos e os mais sujeitou. […] ficaram sujeitos todos os Indios comarcãos da Baía desde Camamú até o Itapucurú, que são 40 leguas. (ANCHIETA, 2016)
A desalienação, portanto, exige crítica e denúncia. Trata-se de abrir uma fissura na versão difundida pelo poder hegemônico, para dar luz a uma nova perspectiva. É preciso contar o outro lado da história e, por isso, Bodanzky mostrou a exploração, o conflito e a degradação, não para focalizá-los como elementos excludentes em relação aos seus opostos, mas para destacar a complementaridade entre eles, no convívio entre o próprio e o estrangeiro, especificamente no processo de colonização.