Descoberta e identificação: as literaturas africanas de Língua Portuguesa e eu

Farrel Kautely

Há a perspectiva de que a literatura nos permite viajar, visitar outros lugares, outros mundos. Gosto dessa propriedade dela, independente se fantástica ou não. Por muito tempo meu contato com ela se restringiu a obras estrangeiras, de escritores estadunidenses ou europeus. Lembro que quando li O caçador de pipas, do Khaled Hosseini, me dei conta de que os mundos diferentes que eu andava visitando até então eram muito parecidos. Eu lia o que chegava até mim através de recomendações, aquilo que eu encontrava quando ia a uma livraria, do que eu via em mídias… Conheci e fiquei intimo de muitos clássicos estrangeiros antes de ler um brasileiro, e minha primeira leitura de uma obra africana viria muito depois. Hoje minha leitura abrange muito mais obras brasileiras caso eu compare com as demais, principalmente de autores contemporâneos, poucos deles conhecidos nacional ou internacionalmente. Nelas experimento uma identificação com os conflitos narrados nessas obras, dramas e desafios muitas vezes comuns em meu meio social, e isso me traz certo prazer.

Ainda nutro gosto pela viagem internacional ou intermundial, é claro, e recentemente descobri que posso sair e encontrar uma literatura com a qual me identifico bem, mesmo que eu tenha de dispensar alguns esforços que há muito tempo não dispensava com a literatura brasileira, como pesquisar por termos ou acontecimentos históricos para entender melhor algum trecho, por exemplo.

Falo da literatura produzida nos países africanos colonizados por Portugal, cujo acesso me era um tanto dificultoso. Em parte graças a um mercado editorial onde é mais fácil encontrar obras traduzidas de línguas europeias que um livro em Língua Portuguesa de um escritor africano (ou até mesmo brasileiro).

Incorporei essas literaturas à minha leitura. Acho incrível como produtores culturais recentes e (ou) ainda vivos recebem título de inaugurador de determinado gênero em sua terra, desde poetas, como a moçambicana Noémia de Sousa, a romancistas e dramaturgos como Pepetela, de Angola. Observando esse fenômeno recorrente, cheguei à conclusão de que as independências das colônias portuguesas nesse continente são recentes, se comparadas a do Brasil, e que as produções literárias nesses países estão (ao contrário de como aconteceu no Brasil) intimamente ligadas ao processo de independência e (ou) à luta contra o colonialismo e imperialismo. No Brasil, vejo dois momentos de ruptura com Portugal, talvez um processo ainda mais gradual, se comparado com as colônias africanas.

Desvinculamo-nos da metrópole em 1822, com a declaração da Independência, mas foi em 1889 a instauração da República. Cabo Verde e Angola conquistaram a independência de Portugal em 1975. Moçambique, em 1974. Os rompimentos africanos me parecem mais abruptos, embora, assim como o Brasil, o desmembramento não signifique a cessão das relações com Portugal ou a ausência de conflitos com um país imperialista, o que fica evidente em algumas das obras que li recentemente.

Outro contraste entre as literaturas africanas de Língua Portuguesa e literatura brasileira que me dá muito que pensar está relacionado ao início das produções. Já tínhamos, durante o Brasil colônia, uma produção que hoje é amplamente conhecida e estudada por aqui, enquanto que as literaturas africanas são relativamente recentes. A apropriação da literatura europeia (em sua estrutura, temática, lirismo, etc.) e adaptação da mesma à cultura heterogênea construída por aqui, me parece ter muito em comum com o despertar da literatura africana. Porém, não consigo ver no Brasil a literatura ter sido usada como instrumento de luta social de forma tão intensa como foi e tem sido nas antigas colônias africanas de Portugal. Ao contrário, quando penso em brasileiros poetas no período colonial brasileiro me vem à mente Gregório de Matos ou Tomás Gonzaga. Gregório era brasileiro por ter nascido em Salvador, mas ressentia-se com qualquer emancipação negra, por mínima que fosse, e passava seus dias escrevendo versos sobre como lhe soava absurdo eles estarem se dando bem enquanto ele se via em decadência. Esse gostava de ridicularizar negros. Gonzaga era português, embora tenha vivido no Brasil boa parte da vida e conspirado contra a coroa portuguesa. Nenhum dos dois produziu obras literárias como produziram os africanos colonizados por Portugal. Ao menos não com os mesmos objetivos.

Gosto da perspectiva de os colonizados portugueses na África terem utilizados uma arma do colonizador para promover sua liberdade. Vi isso nas críticas recorrentes à globalização, presentes nas obras e estudos sobre elas que tive contato recentemente. Essas literaturas expõem o uso da globalização como desculpa ou justificativa para o avanço imperialista que, aos poucos, incorpora e, ao mesmo tempo, dissolve aspectos culturais de outros países, buscando homogeneizá-los para obter melhor controle de seu povo. A língua é uma arma utilizada com esse propósito, quando imposta ao povo conquistado. Foi o que fez Portugal, impondo através da força. E é o que busca fazer os EUA, através da expansão de sua cultura. Os poetas e escritores africanos de Língua Portuguesa têm noção disso. É em português que escreve Amarílis. É com o uso da língua do colonizador que ela faz seu manifesto, trazendo em seus contos traços da língua natural de Cabo Verde e representações da vida cotidiana do país como uma maneira de se opor à dominação portuguesa. Ela não nega que houve uma mistura, que Portugal conseguiu entranhar-se ali, mas mostra que há resistência e adaptação, que é possível utilizar da cultura do colonizador para enriquecer, enaltecer e promover sua própria cultura. Acredito que essa apropriação da língua para combater o colonizador é ainda mais evidente com Noémia de Souza. A poeta alimentou o espírito revolucionário do povo moçambicano com sua poesia, os convidando a lutar contra a submissão imposta pela metrópole. É tida como mãe dos poetas moçambicanos por ter inaugurado uma cultura literária no país.

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A poeta Noémia de Sousa (1926 – 2002)

A meu ver, à literatura não pode ser atribuído um único objetivo específico. Como escritor, comecei a escrever por ter a necessidade de me expressar e não conseguir através de outros meios. Mas as motivações mudam, e hoje produzo literatura de resistência, às vezes no intuito de representatividade, ocasionalmente criticar algum aspecto da sociedade ou apenas para me divertir e divertir o leitor. No caso da cultura literária africana em Língua Portuguesa, que, como foi exposto há pouco, é relativamente recente, posso ver objetivos que se alinham. Abdulai Sila, escritor guineense, disse que o escritor deve vender esperança, o que entendo como a idealização de um (talvez utópico) futuro onde as dificuldades foram superadas, onde é possível viver em paz, feliz e com dignidade; Noémia usa a poesia como resistência e convoca à revolução, enquanto Pepetela convida o povo angolano para refletir a respeito do imperialismo estadunidense, que constantemente trama maneiras de separá-los e conquistá-los.

Ler essas obras me foi uma atividade enriquecedora, na medida em que me permitem fazer alguns contrastes entre os problemas provocados pelo processo de colonização e influência imperialista nesses países com os problemas que o Brasil ainda enfrenta. A cultura racista instaurada durante o Brasil colônia dita o modo de pensar do brasileiro até hoje, e creio que nunca vai nos abandonar por completo. Somos um povo homogêneo étnica e culturalmente que parece não se reconhecer assim, o que provoca desunião e nos deixa à mercê de forças imperialistas. As palavras de Likishi ao povo angolano em A corda (PEPETELA, 1978), quando os imperialistas tentam dividi-los apelando para suas diferenças étnicas e raciais, poderiam muito bem ser direcionadas ao povo brasileiro também. Não consigo olhar para a literatura produzida nos países africanos de Língua Portuguesa sem fazer um contraste com a nossa, considerando também os aspectos sociais envolvidos. Gostaria que mais dos grandes nomes da literatura brasileira representassem resistência e luta contra as disparidades injustas nas relações humanas, como são os expoentes da literatura africana. Por aqui tivemos o reforço do racismo em literatura para crianças e o mi-mi-mi de poeta ressentido (ou interesses muito particulares, quando o poeta é revolucionário) diante de pequenas ascensões de negros. Mas talvez eu esteja reclamando de barriga cheia. Afinal, nosso maior escritor é negro e há, aos montes, poetas dizendo palavras muito parecidas com as de Likishi. Pena que poucos deles obtêm grande destaque.

As palavras de Likishi aos revolucionários angolanos (entre eles negros, mestiços e brancos) que lutavam contra o imperialismo estadunidense. Peça A corda, de Pepetela:

“Se pensarem agora e virem que a cor da pele não conta no combate, também compreenderão que, depois da vitória, ela poderá não contar. Depende de como se organizarem. Gritam ‘abaixo o racismo’, mas pensam que estão a dizer ‘abaixo o branco’ ou ‘baixo o negro’. Não é nada disso. Quando se grita ‘abaixo o racismo’, quer dizer abaixo as diferenças entre os homens de cor diferente. Pensem, meu filhos, e vencerão.”

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