O Romance dos Três Reinos
“O Império abaixo do Céu, após um longo período de divisão, deve ser unido; após um longo período de união, deve ser dividido. Assim tem sido desde sempre”.
Essas são as palavras iniciais de O Romance dos Três Reinos, que compõe os quatro grandes clássicos da literatura chinesa, junto com Margem d’Água, Jornada ao Oeste e O Sonho da Câmara Vermelha. Essas palavras iniciais expressam, numa excelente concisão poética, toda uma vastíssima tradição de pensamento, que abrange desde o taoismo, o confucionismo, até o pensamento budista, que no século XIV, ano da escrita desse livro, já estava bem integrado na China. Essa frase nos apresenta a percepção de um movimento cíclico da História e do cosmos, que caminha da união à desunião, do progresso à conservação. Transmite-nos o sentimento da impermanência de tudo, do constante sofrimento ocasionado pelos movimentos da vida.
Assim como muitos dos grandes clássicos antigos, é uma obra composta pelas mãos de mais de uma pessoa. O livro é atribuído a Luo Guanzhong, mas ao longo do tempo sofreu alterações, como o acréscimo do poema de abertura por Mao Zonggang, um de seus primeiros editores:
On and on the Great River rolls, racing east.
Of proud and gallant heroes its white-tops leave no trace,
As right and wrong, pride and fall turn all at once unreal.
Yet ever the green hills stay
To blaze in the west-waning day.
Fishers and woodsmen comb the river isles.
White-crowned, they’ve seen enough of spring and autumn tide
To make good company over the wine jar,
Where many a famed event
Provides their merriment.
(Romance of the Three Kingdoms, tradução de Moss Roberts).
Belíssimo poema para com ele se encarar um ciclo de guerras — o poder das águas do Yangtzé faz com que desapareçam tanto heróis quanto vilões, tudo desaparece no fluxo eterno da História. Mas o rio permanece, sua presença misteriosa, as possibilidades que dele podem ser retiradas, o inconsciente das águas oníricas, isso permanece.
Considerando a tendência humana de sempre criar relações, é possível citar uma passagem famosa de um grande historiador ocidental, Thomas Carlyle, que nos traz uma paisagem semelhante à desse poema de abertura:
Um filósofo paradoxal, levando até ao exagero aquele aforismo de Montesquieu ‘Feliz do povo cujos anais estão cheios’, disse ‘Feliz do povo cujos anais estão vazios’. Não haverá neste dito, insensato como parece, algum grão de razão? Porque verdadeiramente, como já se tem escrito, ‘o silêncio é divino’ e do céu; e assim em todas as coisas terrestres há também um silêncio que é melhor que qualquer discurso. Pensai bem: o acontecimento, a coisa de que se pode falar e se pode registrar não é, em todos os casos, um rompimento, uma solução de continuidade?
[É difícil evitar de relacionar essa passagem com as linhas básicas que formam o I Ching, linha quebrada e linha contínua, que simbolizam elementos ou forças básicas da existência]
Nem que seja um acontecimento feliz, ele envolve mudança, provoca perda (de força ativa); e até certo ponto, quer no passado, quer no presente, é uma irregularidade, uma doença. A nossa bem-aventurada deveria ser a mais calma perseverança; não o deslocamento e a alteração — se os pudéssemos evitar.
Porque a terra, em todos estes momentos, se vestia anualmente de verde e amarelo com as suas benéficas colheitas; a mão do artífice, o espírito do pensador não descansavam: e por isso, apesar de tudo, e a despeito de tudo, nós possuímos este tão glorioso e florescente mundo, sob uma cúpula tão alteada; a respeito do qual, a pobre História, pode bem perguntar, com assombro: Donde veio ele? Ela sabe tão pouco disso, mas sabe tanto do que o obstruiu, daquilo que o teria tornado impossível! Tal é, porém, por necessidade ou por insensata escolha, a sua regra e prática; e por isso, aquele paradoxo de que ‘Felizes os povos cujos anais estão vazios’, não deixa de ter o seu lado verdadeiro”. (Revolução Francesa, de Thomas Carlyle).
A fábula de O Romance dos Três Reinos se passa na China entre os séculos II e III d.C. É uma mistura de ficção e relato histórico, e os fatos históricos são providos por fontes de historiadores, mas também pelo folclore, pois a história se transformou em mito e foi cultivada no imaginário popular.
A narrativa começa apresentando os momentos finais da Dinastia Han, uma das principais dinastias da China, uma era de ouro, influente até hoje na memória e cultura de seu povo. A desintegração do Han dará origem a um dos períodos mais sanguinários da História: a Era dos Três Reinos, a divisão tripartite do território chinês.
O Han se deteriora fundamentalmente pela corrupção das classes altas. Luo Guanzhong apresenta de modo negativo o grupo poderoso de conselheiros do imperador, os eunucos. Homens ambiciosos, criam o caos por meio de subornos, perseguições e assassinatos. O caos culminará no surgimento de um movimento popular, em oposição ao estado de corrupção, mas que se desencaminhará em pouco tempo, tornando-se um movimento que espalha violência por todo o território, movimento que ficou conhecido por “Turbantes Amarelos”. É nesse momento de combate aos “Turbantes Amarelos” que os grandes generais serão recrutados e a China será abalada por uma era mitológica.
Há centenas de personagens no livro, mas alguns se destacam mais, e vários desses viraram semideuses, sendo adorados e venerados ainda hoje: Liu Bei, Cao Cao, Zhuge Liang, Guan Yu, Zhang Fei, Lu Bu, e centenas de outros.
O livro foi traduzido para muitos países da Ásia. Existem três traduções para o inglês, sendo a mais famosa a de Moss Roberts. E existe uma versão em espanhol, dividida em muitas partes, disponível na Amazon. Existem até mesmo releituras modernas, e, dentre essas, a mais famosa é a do escritor de Musashi, Eiji Yoshikawa. Infelizmente não há tradução da obra para o português.
Liu Bei e Cao Cao são os dois protagonistas. Antagonizam-se entre si. Liu Bei é um idealista, um verdadeiro confucionista, que busca resgatar a unidade do Império Han, profundamente devotado à piedade filial. Liu Bei faz parte da classe baixa, é um camponês, porém tem sangue imperial, seus antepassados eram membros do Han, mas com o passar do tempo sua família foi perdendo ligação com o império. Há uma bela versão em mangá, baseada na versão japonesa de Eiji Yoshikawa, que apresenta uma cena inicial diferente do livro original, mas que traduz o mesmo espírito: Liu Bei observando um grande rio. Nessa imagem inicial vemos essa potência a partir da qual tudo está prestes a emergir; vemos a descendência imperial de Liu Bei agindo sobre ele, buscando a sua restauração no império, antes mesmo de que Liu Bei tenha consciência clara do seu grande objetivo. O rio, na imagem inicial tanto da versão original quanto das releituras, é símbolo do mistério das causas ocultas que movem a História, do mistério da interligação entre a história do indivíduo e a história cósmica, do mistério do destino.
Continuando a ligação com uma visão ocidental, posso citar o comentário de Whitehead em resposta a uma questão sobre a natureza das coincidências nos acontecimentos históricos, pois muitas vezes os acontecimentos por coincidência ou os acasos acontecem de tal maneira que nos parece haver uma preordenação dos acontecimentos, uma providência na História; a isso Whitehead responde:
As causas, tendo a pensar, sempre estiveram lá, e os eventos que vemos como simples acidentes do acaso são apenas os últimos passos de uma longa linha de causalidade. (Dialogues of Alfred North Whitehead, de Lucien Price).
Mas um dos temas-chave para a compreensão do livro é justamente o antagonismo entre Liu Bei e Cao Cao. Cao Cao também busca a unidade do império, mas a partir de um recomeço, a partir da destruição de tudo e instauração de uma nova ordem, com ele próprio na liderança. Cao Cao, aos nossos olhos, seria um maquiavélico, os meios não importam e sim os fins. É um realista extremo, um pessimista. Este mundo está apodrecido, nenhuma boa intenção pode frutificar, qualquer bom valor será destruído. Para vencer, é preciso de algum modo estar podre também. “Prefiro muito mais trair o mundo, que deixar que ele me traia”.
O tema desse grande épico, portanto, é o embate entre a virtude e a força, a obediência e a desobediência, a conservação e o progresso. Mas o equilíbrio entre essas duas forças opostas é difícil, praticamente impossível. Uma delas deve ceder, e geralmente é a virtude que é derrotada. Disso surge esse sentimento trágico, esse mal-estar. Não há solução para este impasse?
Zhuge Liang, o Dragão Adormecido, foi um dos grandes sábios da China, e ele será o estrategista de Liu Bei. Muitos tratados de estratégias militares têm como base seus ensinamentos. Foi um homem sábio e virtuoso, dominou os grandes livros de mistérios, tinha profundo conhecimento político, psicológico, astrológico. E é com ele que Liu Bei conquistará grandes vitórias. Mas para conseguir sua ajuda, Liu Bei terá de passar por um processo de autodomínio, terá de ser transformado.
Há muitos relatos de estratégias militares no livro, é possível aprender muito da arte da guerra através dele. E esses personagens são de alto nível, grandes heróis se incluem na categoria mais elevada de personagens na classificação de Northrop Frye.
Além disso, o livro apresenta muito da cosmologia antiga, uma sociedade num universo de analogias, onde as mudanças do ambiente social humano refletem e são refletidas pelas mudanças do ambiente cósmico. Um grande eclipse, por exemplo, é uma previsão de queda do imperador. Um terremoto pode significar o assassinato de um general.
É na figura de Zhuge Liang que será possível ver a solução para o impasse entre a união e o rompimento: a astúcia e a força usadas a serviço da virtude.
Há um tempo venho buscando divulgar este livro, um pouco de suas histórias, de modo que possa fazer parte de nosso mito particular, de nossa biblioteca imaginária. Há um tempo venho traduzindo uma série de vídeos que resumem com detalhes esse épico, e pode ser assistida neste link:
O livro ainda hoje está vivo no imaginário asiático, suas histórias estão em filmes, teatros, óperas, mangás, e até em jogos de videogames, de onde muitos têm o seu primeiro acesso.
Vou apresentar aos poucos no Recorte Lírico algumas das histórias marcantes desse épico chinês, e assim revelando seu potencial educativo, que se dá por sua profunda contemplação das ações humanas, por sua sincera reflexão moral.
Parabéns ao @William pelo profundo artigo, denso, pesquisado e muito bem escrito. Raro ver os jovens citando fontes tão importantes como Thomas Carlyle. Que bom que teremos uma série de um tema que, pelo menos pra mim, é território inexplorado. Bela estreia!