13 de maio
Heloísa Gusmão – [email protected]
Toda ternura da canção de minha infância me preenche de volta o espírito: ave, ave, ave Maria. Em minha imaginação, confundida agora com uma memória embaçada, como os olhos que, imersos em lágrimas, confundem o real com o desejável, tudo é possível. Que o Sol dance diante de nossos olhos e envergonhe os mais incrédulos. Possível. Que a mulher (que até ontem nos jornais apanhava diariamente do esposo bêbado e até pouco tempo sequer podia votar) de repente surja luminosa no céu e, falando em claro português, mande nos homens e mesmo em Deus, e Dele atrase a cólera sobre o mundo. Possível. Que segredos de Estado e de papas sejam revelados a criancinhas como eu e, por que não, a mim? Possível. Era mesmo possível que, debulhando a espiga dum rosário na cidade mais interiorana de Minas Gerais, eu, que não controlava sequer se podia sair à rua, de repente controlasse que “os erros da Rússia” não mais se espalhassem pelo mundo, fossem quais fossem os erros desse lugar misterioso (que causava alguma aversão geopolítica à Rainha dos Céus e, portanto, também a mim). Ave, ave, ave Maria.
O 13 de maio era o Deus ex machina perfeito para um roteiro em que as personagens repetiam, incansáveis, seus erros. Maria ex machina. O Grande Autor dessa estória mal contada descobrira como surpreender com genialidade a todos os seus leitores. O 13 de maio me parecia o milagre mais sublime de uma literatura feita de gente de carne e osso, de políticos, de alto e baixo clero, de matérias nos jornais, de guerras e de sangue. O 13 de maio e a canção de minha infância eram esperança num mundo em que o erro não mais se espalhava. Não é belo que a mãe intervenha e pare a briga de seus filhos? Ave, ave, ave Maria.
Hoje abro os jornais e vejo a peste. A morte. A guerra e traição entre homens de Estado, alto e baixo clero. Sobretudo, o erro. Na Rússia e fora dela. Indiscriminadamente. As contas debulhadas nos rosários de minha infância se perderam. Não marcaram o caminho de volta como as migalhas de pão no caminho de João e Maria. Não há caminho de volta. A mulher não aparece mais no céu. Se fala, não é em português claro. O sol já não dança sobre nossa incredulidade e os irmãos continuam em guerra, sem uma intervenção materna que os impeça de espalhar o erro. E, no entanto, dos meus lábios ainda brota aquela canção, que não me deixa esquecer a inocência com a qual, contando minhas minúsculas bolinhas de fé, eu ajudava a mãe de deus a educá-lo em sua ira e a mãe dos homens a intervir em seus erros. Ave, ave, ave Maria.
Hoje grandes gotas me caem dos olhos, como as contas de um triste rosário marinho. Salgadas como a dor de perder amigos para uma doença ainda desconhecida; salgadas como minha impotência diante de um quadro geopolítico incontrolável; eu, novamente incapaz de controlar sequer se posso sair à rua, na pequenez de minhas contas diárias, debulhadas num rosário de pequenas responsabilidades e cuidados com aqueles que me cercam, descubro-me mulher, uma entre tantas marias, cheia de uma graça humana, dançando como um sol de esperanças ao som das notas de minha infância, agora ressurgida em meus lábios. Se tenho fé, já não sei e já não me importa, importa que as aves que voam do meu peito ainda cantam todos os dias: ave, ave, ave Maria.