O que é um clássico literário?

Farrel Kautely

Classificar e nomear coisas, abstratas ou concretas, sempre foi recurso essencial para a comunicação de nossa espécie, embora nossas classificações apresentem, com frequência, limitações. Para se falar de literatura, por exemplo, os interlocutores da conversa precisam dar significados ao menos parecidos à ideia do que seja literatura… Parecidos porque, afinal, quais palavras têm significantes completamente específicos? A própria literatura é alvo recorrente de discussão (“Isso é literatura?”, “Isso não é?”), e debates de mesmo teor são levantados se procurarmos definir o que é uma obra literária clássica.

Thomas Stearns Eliot, poeta inglês do século 19, foi um importante crítico literário de sua época. Em seu ensaio O que é um clássico? explorou profundamente a ideia de maturidade para moldar seu conceito de clássico e viu em Virgílio o único poeta em que tal maturidade foi atingida, tornando possível a composição de uma obra clássica. A argumentação de Eliot para defender tal posição não é frágil, o autor elucida a grandeza da história do império romano e os feitos alcançados pela língua latina até então como o caldeirão e ingredientes ideais para que um poeta compusesse verdadeiro clássico.

A maturidade de uma literatura é um reflexo da sociedade dentro da qual ela se manifesta: um autor individual — especialmente Shakespeare e Virgílio — pode fazer muito para desenvolver sua língua, mas não pode conduzir essa língua à maturidade a menos que a obra de seus antecessores a tenha preparado para seu retoque final. Por conseguinte, uma literatura amadurecida tem uma história atrás de si. (ELIOT, 1991).

Julgo importante ressaltar que a maturidade procurada por Eliot não permite ao termo clássico abrangência o suficiente para incluir Shakespeare também como um poeta clássico. Eliot reconhece em seu ensaio que o dramaturgo foi o mais maduro entre os poetas ingleses, que nenhum outro que o seguiu foi capaz de “tornar a língua inglesa capaz de exprimir o mais sutil pensamento ou as mais refinadas nuances de sentimento”, o que está incluso nas exigências da proposta de Eliot para que um poeta seja capaz de compor um clássico: um tempo de maturidade mental, de costumes, de língua e perfeição de estilo comum. Eliot argumenta que Shakespeare não viveu em uma época em que sua cultura e língua ofereciam o caldeirão já mencionado. De acordo com ele, a língua e cultura latina proporcionavam a Virgílio consciência histórica, apoiada pela consciência da língua e cultura gregas e sua importância para a construção da sua própria cultura. Posso resumir a perspectiva de Eliot em: Virgílio reescreveu sua língua em sua poesia, esgotando de forma sublime as possibilidades que ela oferecia, enquanto que outros poetas, de outras línguas, não. Faltou-lhes a oportunidade de viverem em uma época  madura o suficiente.

Tal posição pode dar a Eliot um ar carrancudo, arrogante, até, em sua posição irredutível. Mas ele busca deixar claro em seu ensaio que não despreza ou que deixa de usar clássico nas formas mais abrangentes comumente vistas. Algumas delas em acordo com o entendimento de Italo Calvino, escritor do século 20 e também critico literário,  sobre as possíveis cargas semânticas da palavra, que conhecemos através de seu livro Por que ler os clássicos.

Contrastar a visão desses dois conhecidos críticos oferece coisas interessantes de serem observadas e refletidas. Calvino não propõe um parâmetro único e específico como faz Eliot para o que é um clássico, discute a validade de vários conceitos ao longo do seu texto. Em determinado ponto também evoca a maturidade como elemento necessário para se extrair mais de uma grande obra sua classissidade, ou melhor, o que tem de grandioso, tendo em vista que a maturidade oferece condições de o leitor apreciar mais detalhes, níveis mais profundos da obra, mais significados e afins. Este autor não deixa de valorizar a leitura na juventude, é claro, reconhece que é uma leitura (ou releitura, como comento logo à frente) de descoberta, o que leva Calvino a concluir que “toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira” e que a perspectiva de que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” segue essa conclusão como um axioma.

Calvino apresenta noções do que pode ser uma obra clássica que considera também a subjetividade do leitor, uma perspectiva paralela à de Eliot, que explorou unicamente à figura do poeta. Vemos alguns aspectos dos critérios estabelecidos por Eliot em algumas das propostas de Calvino,

7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os trações que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na língua ou nos costumes);

10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs. (Calvino, 2004)

Na sétima definição apresentada, Calvino fala em obra clássica como aquela que porta a consciência da cultura (ou culturas) que a precede, ao mesmo tempo que fortalece outra ideia apresentada por ele: toda primeira leitura individual de um clássico é, na verdade, uma releitura, tendo em vista todo o repertório cultural que esse leitor estreante já porta consigo. E essa perspectiva está alinhada com a décima apresentada por Calvino, esta também prevista por Eliot: uma obra capaz de esgotar as possibilidades de uma cultura, uma obra universal e, por que não?, atemporal.

Não tenho intenção de responder a pergunta do título, não me vejo em condição de eleger uma definição, seja alguma apresentada por Calvino ou a proposta por Eliot. Todas me soam válidas. Mas gosto da sugestão de Calvino de eleger meus próprios clássicos, e num exercício momentâneo, listo estas obras, ciente de que, caso o faça em outro momento, outras tantas que me fogem à mente agora seriam incluídas.

Alguns já clássicos que são meus clássicos:

  • Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez;
  • Os miseráveis, de Victor Hugo;
  • Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis;
  • A revolução dos bichos, de George Orwell;
  • Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.

Meus clássicos que (até então) nunca vi serem chamados de clássicos:

  • O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien (cogitei Silmarillion, mas, não);
  • Saga Harry Potter, de J. K. Rowling;
  • O alienista, de Machado de Assis;
  • O caçador de pipas, de Khaled Hosseini;
  • O jardim secreto, de Frances Hodgson Burnett.

Referências

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos?. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

ELIOT, Thomas Stearns. De poesias e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991.    

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