O sequestro do tempo e a desumanização

"Eu não tenho tempo para dizer adeus, estou atrasado, atrasado" (Alice no País das Maravilhas)

Se há uma coisa que hoje sabemos, é que estamos nos destruindo. Há uma enormidade de dados científicos e bem documentados, sobre a proximidade do precipício apocalíptico. Os sinais vêm de todos os lugares e todos ao mesmo tempo. Repeti-los a exaustão não é meu objetivo. O que está faltando não são métricas, mas unidade. Antes de continuar, é preciso ratificar que extensão da crise não tem qualquer medida, porque abrange absolutamente todas as áreas, incluindo a capacidade das pessoas de viverem entre si. Agora, se você não sente a vertigem da queda, não significa que o mundo não esteja caindo, mas apenas que você perdeu seu senso de gravidade.

O verdadeiro ponto aqui, é uma questão antropológica, que diz respeito à forma como os seres humanos gerenciam ou deixam de organizar sua violência intrínseca. Não faz muito tempo em que o Ocidente abandonou um ciclo vicioso de guerra, o século XX foi o ápice e o declínio da barbárie, porém, não o final. A verdade é que a violência não cessou, tornou-se tremendamente sofisticada, terceirizada, automatizada, tecnologizada, de modo que a maioria dos indivíduos sente que não a exerce. No entanto, a chamada sociedade de consumo é a mais intolerante e a mais devastadora de todas as sociedades desde o início dos tempos. Em apenas algumas décadas, ela terá literalmente desfigurado a face do mundo.

Para viver em paz, padronizamos e esterilizamos estilos de vida, esgotamos nossos recursos, asfixiamos os oceanos, deixamos gerações futuras improváveis com resíduos que não só sobreviverão a eles, mas causarão sua perda. Nunca fomos tão violentos como agora, porque não apenas desconfigura o ser humano, mas, sobretudo, porque lhe impossibilita o futuro. Na falta de proposito no presente, buscamos destruir o futuro. Como bem retratado no filme “Clube da Luta” do diretor David Fincher: “Nós somos os filhos do meio da história, sem propósito ou lugar. Não tivemos Grande Guerra, não tivemos Grande Depressão. Nossa grande guerra é a guerra espiritual, nossa grande depressão é a nossa vida. Fomos criados pela televisão para acreditar que um dia seríamos ricos, estrelas de cinema. Mas não seremos. E estamos aos poucos aprendendo isso. E estamos muito, muito revoltados.”

O sequestro do tempo e a desumanização
Cena do filme “Clube da luta”, do diretor David Fincher. (Imagem: “Um filme me disse”/Reprodução)

Houve um tempo em que a terra era farta de recursos naturais e a humanidade não possuía meios suficientes para explorar esses recursos, mas, agora, temos muito recursos e ainda mais meios para explora-los. Chegará o tempo onde teremos ainda mais tecnologia para exploração de recursos, porém, não teremos recursos naturais algum para explorar. Ganhamos um mundo para torrar e certamente estamos torrando.  Ainda há alguém para quem a exploração e manipulação ultrajante dos seres vivos não é um massacre puro e simples? Cada vez mais exploração, mais manipulação, como se estivéssemos buscando a “autoimolação suprema”. Em muitos aspectos, a forma de sociedade que conhecemos se assemelha àqueles sistemas religiosos absurdos que buscavam se regenerar no sangue de seu próprio holocausto, como o dos astecas. E outros sacrifícios estão chegando, tão aterrorizantes que ninguém será capaz de escapar deles. Todas as crises eclodem simultaneamente, cultural, ambiental, econômica, política, moral, espiritual e não sabemos mais a quem recorrer. E para aliviar o desespero tentando preencher o vazio existencial do ser humano com um consumo desesperado. O trabalho de sentido existencial, que antes pertencia a religião e as artes, agora foi sequestrado e pertence ao mundo do mercado e do puro consumo.

Estamos presenciando uma desumanização do ser humano. O homem moderno se enxerga como civilizado e tudo antes dele como bárbaro. Mas a verdade é que a barbárie nos assombra, a vida bárbara nos tenta.

A Bíblia diz que o profeta Natan submeteu ao rei Davi o seguinte caso: querendo alimentar um viajante, um homem rico preferiu oferecer a única ovelha de um homem pobre em vez de sacrificar uma de suas muitas bestas. Davi ficou indignado: “O homem que fez isso merece a morte!” “Esse homem é você!”, respondeu Natan. É o caso dos civilizados, horrorizados com as práticas dos “bárbaros”, mas que não enxergam o mal à sua maneira de ser. O rei Davi era um homem refinado, um poeta, um homem com profunda aspiração pela beleza, o que o tronou bárbaro não foi sua brutalidade, longe disso, mas sua desumanidade. A barbárie é sinônimo de desumanidade, de violência pacífica e harmonizada com mal, é viver em sintonia com o mal sem colidir com ele.


O parentesco da barbárie e da civilização também reside no que toda civilização começa e termina na barbárie. Começa lá porque os civilizados são bárbaros que não têm mais inimigos e são capazes de encontrar uma ordem estável e próspera. Termina aí porque a inevitável decadência de qualquer civilização a leva a reações brutais. O fim de uma civilização é um círculo vicioso onde acreditamos remediar o aumento da injustiça por mais injustiça. Somos, portanto, bárbaros de duas maneiras: porque somos desumanos, e porque aspiramos a nos tornar humanos novamente. Sem a civilização nos tornamos bárbaros, com a civilização percebemos o quanto já somos bárbaros.

Mas onde reside a barbárie do nosso tempo? Exatamente na falta de tempo!

“Eu não tenho tempo para dizer adeus, estou atrasado, atrasado! ”, diz o Coelho Branco para Alice, no filme “Alice no País das Maravilhas”. Aí reside a tirania dos bárbaros. Não temos tempo! O nosso tempo foi comprado e, em muitos casos, sequestrado pelo mercado e essa é a base da nossa tirania. Estamos nos destruindo porque não temos tempo para o que é humano, tudo o que pertence ao espirito é impertinente, desnecessário, é perca de tempo. Pode dizer-se mesmo que a crise do mundo moderno jaz na base da desvalorização do homem e, paradoxalmente, na valorização extrema do tempo.

No mundo de hoje, não é o grande que come os pequenos, mas o rápido que devora o lento, o tempo e a velocidade da ação são a vantagem competitiva e decisiva do mercado e de todo tecido social. Essa nova abordagem do “tempo econômico” constitui uma ruptura com os modelos econômicos dominantes (em que o tempo está ausente) e propõe uma nova teoria do consumo, fornecendo a base para uma teoria da alocação de tempo ideal. Agora tempo é “um insumo” (produto) que, como qualquer outro bem, participa da produção de satisfação dos clientes. Essa realmente é uma grande mudança.

Se olharmos para nossos comportamentos de consumo, a maioria dos produtos e serviços que consumimos hoje, correspondem a uma política de economia de tempo. Ninguém quer assistir um vídeo de 10 minutos. O conteúdo de 10 minutos precisa ser reduzido para no máximo 5 minutos, para colocarmos na velocidade 2x e assim consumir o conteúdo em 2 minutos e meio. O tempo, tornando-se um recurso cada vez mais escasso, foi transformado em um ativo que as empresas buscarão cada vez mais apreender. Essa captura do tempo pelo mercado é uma das causas da grande transformação antropológica que estamos testemunhando, a substituição do homo economicus por um homem que cada vez mais aceita as limitações à sua liberdade em troca de cada vez mais consumo.

Fastfood, encontros rápidos, cochilos ligeiros para ser mais produtivo, testemunham esse fenômeno. É assim que nosso tempo está se tornando bárbaro e desumano, como se um processo técnico estivesse conduzindo nossos cérebros, nossos corpos, nossos relacionamentos, nossa agenda e toda nossa forma de existir.

Primeiro o valor foi tirado do indivíduo para os objetos, agora é tirado dos objetos para o tempo e, como não temos mais tempo, não nos resta mais valor algum. É somente quando o ser humano se entrega aquela análise introspectiva do seu mundo interior que percebe seu real valor e proposito. Como o filho prodigo que acaba por “cair em si” (Evangelho de Lucas 15:17). Somente depois que o prodigo “caiu em si”, pôde reconhecer sua infeliz condição. “Estava perdido, ” disse Jesus, “e achou-se.” O prodigo ainda pode cair em si, mas nós, não temos tempo nem mesmo para “cair”. O cair em si requer tempo, silêncio, reflexão e isso não é coisa do nosso tempo. A civilização do consumo é uma conspiração contra todo tipo de vida interior. Não temos tempo para vida interior.

A presente agitação é uma das muitas chagas do mundo moderno. O ser moderno tem coisas de mais a fazer e as desejaria fazer todas. E como não tem tempo de faze-las, corre, apresa-se, enerva-se, cai na depressão, e, no fim das contas torna-se intolerável, bárbaro, esgota-se, e acaba não fazendo o que deseja.

O conselho do apóstolo Paulo é precioso: “É necessário remir o tempo, pois os dias são maus”. (Efésios 5:16)


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