“O Rei de Havana” é um essencial livro de cheiro ruim

Certas obras possuem um poder único de arremessar aos polos a avaliação final. Amar ou desamar por completo uma arte é preciso, primeiro, aplaudir o seu talento para não passar despercebido. O Rei de Havana, de Pedro Juan Gutierrez, livro de 1999 e lançado em 2017 no Brasil pela Alfaguara com tradução de José Rubens Siqueira, é esse tipo de literatura.

Rey, o protagonista controverso, é a personificação de miséria e estereótipos latinos. O Rei de Havana, como o próprio personagem central fala como referência a si, mostra um sujeito muito jovem podado na tragédia, um errante que vaga por uma Cuba sexual dos anos 90 e se vê amadurecendo ou formando calos em todas as partes do corpo e da alma na crueldade que é viver a solidão tão populosa das ruas. A narrativa é tragada no estômago e na luxúria.

Por estômago é atravessado um circuito narrativo de fome. Um desalento que assola uma parcela significativa da população da América Central, neste caso. O livro é feito para tirar do eixo e do conforto qualquer leitor que busca serenidade e consolo. Pedro Juan é sincero em cada frase disposta nas páginas. Uma sujeira que não é poética. Eis um trecho:

“Nenhum dos dois se incomodava com a sujeira do outro. Ela tinha uma xota um pouco ácida e a bunda cheirando a merda. Ele tinha uma nata branca e fedia entre a cabeça do pau e a pele que a rodeava. Ambos cheiravam a bodum nas axilas, a rato morto nos pés e suavam. Tudo isso os excitava.”


"O Rei de Havana" é um essencial livro de cheiro ruim

O sexo é outro elemento presente no universo. Não no sentido confortável. É sempre um sexo sujo, quase um fetiche peculiar. Reynaldo, 16 anos, é preso por engano após uma tragédia. O estilo de Pedro Juan lembra Bukowski com pitadas de Marçal Aquino, Nelson Rodrigues e Jorge Amado.

“Magda devia estar com os cartuchos de amendoim no ponto de camelô. E foi pra lá. Deviam ser umas cinco da tarde. A seu lado passou um sujeito correndo elegantemente. Loiro, branco, alto, bem alimentado. Um excelente espécime de ariano fazendo jogging entre os escombros. Com a melhor roupa esportiva e tênis caros da melhor marca. Evidentemente não tinha entendido porra nenhuma.”

A crítica à Cuba e ao socialismo da ilha da América Latina não é sutil. Pedro Juan Gutierrez é da escola literária chamada Realismo Sujo. A desigualdade social escancara uma humanidade que não deu certo e que teima em não olhar para os seus. A corrente que desagua volta e meia na tentativa de transcrever a precariedade do mundo como objeto de interesse artístico pode errar a aposta vez em quando. Mas quando acerta é um encontro entre genialidade e arte. É assim em Os Supridores, de José Falero, escritor gaúcho que apresentou a saga de dois jovens pobres funcionários de um supermercado. É assim nessa Havana sobreposta ao mítico.

"O Rei de Havana" é um essencial livro de cheiro ruim
Pedro Juan Gutiérrez, autor de O rei de Havana, é também pintor e jornalista. É reconhecido internacionalmente como um dos escritores mais talentosos da nova narrativa cubana. (Foto: Acervo de Thiago Kuerques/Reprodução)

Muitos leitores relataram amor e ódio ao livro. O asco e o desprendimento não são suficientes para a maioria das pessoas abandonarem o livro. Ponto para o talento de Pedro Juan. Ponto para a forma documental que o autor conduz Rey e outros personagens interessantes.

“O ser humano se acostuma com tudo. Se todos os dias nos derem uma colherada de merda, primeiro a gente reage, depois a gente mesmo pede ansiosamente a colherada de merda e faz de tudo para comer duas colheradas e não só uma.”

Sobre técnica literária o que mais chama a atenção é o tempo. A narrativa busca mostrar minuto a minuto da trajetória de Rey. Não há salto no tempo para que o leitor se sufoque com a falta de perspectiva e imprevisibilidade que assola os dias de um cubano que vive nas ruas e passa necessidade. Por outro lado, não há um conflito grandioso no romance que não seja o fato de Rey ser negro e pobre com um órgão sexual avantajado. O sexo é esse elemento central e inquieto do texto. A linguagem crua e chula eleva a percepção óbvia e tão poucas vezes fiel de que na rua não há tempo ou cerimônias.

A atmosfera é caótica no submundo de Havana. Há muito rum, muita sujeira, muita carne, muito suor e muita merda. Se o livro tivesse cheiro, seria de inhaca. Se tivesse textura, seria do líquido viscoso que é gerado pelos lixos abandonados. Pedro Juan apresenta uma literatura visceral com contundente desesperança. Não há medidas para o escritor cubano, sequer meias palavras. É bruto, seco, sujo, real. O livro ser bom ou não vale da experiência e do momento de cada leitor.


Para crônicas e outras análises, como a de “O Rei de Havana”, não deixe de acompanhar a Coluna “Crônicas do Território“.

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