A cultura do sofrimento

Josiel Silva

O desconforto colonizou nossas vidas e nossa maneira de falar, embora essa não seja a verdadeira tragédia: estar doente, sentir-se mal, normalizou-se a ponto de perverter nossa qualidade de vida.

A preocupação com a saúde mental tem se tornado um tema recorrente de conversas em nosso dia a dia. Falamos com muita frequência e naturalidade sobre o número crescente de transtornos emocionais e comportamentais. Esses desconfortos colonizaram nosso modo de vida e nossa linguagem. Termos como “ansiedade”, “transtorno alimentar”, “automutilação”, “transtorno de personalidade limítrofe” ou “depressão” são hoje, entre muitos outros conceitos, correntes em contextos não especializados.

A saúde mental está em crise desde tempos imemoriais, mas nos últimos anos, temos consciência das implicações desse problema. Com um índice insignificante de psicólogos clínicos no Sistema Único de Saúde (SUS), a assistência psicológica tornou-se um privilégio: aqueles que precisam de terapia e não podem pagar, estão condenados à medicalização de seu desconforto. Essa oferta escassa e alta demanda tem sido o terreno fértil ideal para o surgimento de pseudoterapias e estratégias de marketing que tornam a saúde mental visível enquanto a banalizam.

Não é exagero nomear ou caracterizar a atual cultura ocidental como “cultura psíquica”. Qualquer sintoma, emoção, sentimento ou afeto sentido como estranho ou incômodo tende a ser psicologizado ou psiquiatrizado – é um verdadeiro “contágio emocional”. O problema a ser discutido aqui não é, como tem sido defendido por muitos anos, o efeito de contágio de comportamentos suicidas, mas o problema ainda mais preocupante da padronização de nossa conduta. Ou seja: quando alguém é diagnosticado em termos psicológicos ou psiquiátricos, tende a se comportar de maneira a se adaptar sua personalidade, emoções, relacionamentos e comportamento ao distúrbio que lhe foi “confiado”. Há um estranho apego ao transtorno diagnosticado e, consequentemente, um contagio viral desse quadro – e isso não acontece por acaso.

O ponto aqui é bem claro: em uma cultura doente, adoecer é um sintoma de saúde. Em nossa cultura atual, parece que só os doentes têm saúde.

A cultura do sofrimento
É nas redes sociais onde encontramos os principais atores desse problema global, comprando e vendendo ideias duvidosas. (Imagem: Pexels/Reprodução)

Boa parte disso – e não pequena – vem das redes sociais que desenvolveram um verdadeiro fetiche pelo sofrimento. É uma saga de heróis. Agora, basta um problema para se tornar um personagem, que irá lutar contra as forças do mal, diante dos olhos de muitos espectadores no Facebook, YouTube ou no Instagram, e se tudo ocorrer como o esperado, o triunfo será celebrado com muito engajamento. A verdade é que a sociedade das redes sociais é a sociedade do espetáculo. Precisamos de um bom drama, com uma boa trama e com um excelente final feliz. Para ter uma vida relevante.

O ser conectado à internet – as redes sociais, entende que é sua missão de vida eliminar da realidade o cotidiano, o ordinário, qualquer sentimento de desconforto. Tudo o que faz ou sente precisa ser épico. Tudo que faz não pode ser menos que interessante, charmoso, extravagante, de bom gosto, escandaloso, lúcido, relevante ou revelador – ou deve ser representado como se fosse.

Até mesmo o sofrimento precisa ter um significado sublime. O que se costumava chamar de cotidiano, o simples, o repetitivo, o despretensioso foi varrido das redes sociais, agora tudo precisa ser uma perenidade do belo, do relevante, do invejável. O ser humano pós-moderno não está devidamente preparado para o tédio, o cansaço e o ordinário que constituem a vida. Essa é a principal violência contra sua alma e causa predominante de sua constante frustração. Não é estranho que essa seja uma geração das doenças psíquicas.


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E como se não bastasse…

Há toda uma indústria de “felicitóide” (felicidade fictícia), por vezes fraudulentas em termos psicológico-científicos. Livros de auto-ajuda de multimilionários seduzem os seus consumidores com conceitos doces e sugestivos como “resiliência”, “jornada interior de autoconhecimento” ou “crescimento pessoal”, sem falar nas novas práticas xamânicas com substâncias psicoativas que prometem “limpar” nossas “impurezas da alma”; uma indústria que, em última análise, lucra graças ao sofrimento diário. A cultura do sofrimento é próspera em consumidores que se consomem.

É muito guru de plantão, que promete “nos fazer vencer todos os nossos problemas”. A cultura do sofrimento dá voz a quem não deveria ter: a todos os tipos de charlatães que perpetuam desconfortos; gerando uma cultura de sofrimento. Que drama.

Mas se você quer fazer a coisa certa, te darei dois conselhos:

Em primeiro lugar: deixe de lado o pensamento maniqueísta que garante que “a terapia é inútil”, ou que “a terapia é necessária para tudo”. Não transforme a saúde mental em uma moda intermitente e a assistência psicológica em um produto de consumo.

Em segundo lugar: procure um médico, e não um charlatão.


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Você entra no Instagram e os anúncios invadem sua tela: “Elimine a tristeza de sua vida”, “Não sofra mais por amor”. A premissa é poderosa – quem não gostaria de viver eternamente feliz – mas os meios são questionáveis: quem ministra esses cursos – geralmente – não tem conhecimento de psicologia, nenhum código de ética que rege sua prática profissional e nenhuma consequência jurídica se houver negligência psicológica. Mesmo assim, você acessa, clica e paga uma baita grana por um workshop de duas semanas. Infelizmente, quando você termina, percebe que tudo permanece exatamente o mesmo, que suas emoções às vezes são incontroláveis e que enfrentar as dificuldades da vida cotidiana não depende apenas de manter uma “atitude positiva”.

Com essa concepção errônea de ajuda psicológica, às vezes vamos ao psicólogo fingindo sacudir uma varinha mágica com a qual eliminar imediatamente qualquer indício de tristeza, ansiedade, dependência emocional, complacência ou dúvida que habita nosso cérebro. O problema é que a terapia não elimina as emoções, mesmo que sejam desagradáveis; A terapia permite que você as gerencie de uma maneira mais adaptativa. Também ensina como enfrentar problemas interpessoais, priorizar, estabelecer limites ou buscar atividades de reforço no dia-a-dia, mas isso não ocorre durante a hora da sessão, mas nos dias seguintes em que implementamos ativamente – e com muito esforço – as diretrizes que aprendemos em consulta.

Saúde mental é coisa séria; mas nem todos falam seriamente sobre ela.

Como vai a sua saúde mental?

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1 comentário em “A cultura do sofrimento”

  1. O texto é um alerta urgente e que indiretamente vai contra o exército do bem estar químico e kitsch.
    Só não é impecável por dois motivos:
    1. A recomendação de buscar ajuda médica. Ora, como saber se a pessoa vai topar com um médico patrocinado pela Big Farma da Saúde Mental?
    2. A sinalização de que um psicotearapeuta possa orientar como o sujeito irá agir fora das sessões. Além de ser uma prática discutível, o texto não leva em conta possíveis singularidades em que esse suporte dirigido e orientado seja imperativo.

    Mas o texto é fundamental .

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