Meditação sobre os homens
Heloísa Gusmão
gusmao.helo@gmail.com
“Um homem são é aquele que tem a tragédia em seu coração e a comédia em sua cabeça .”
(G.K. Chesterton)
É muito comum que os homens pensem em mim quando me aproximo. Mas vejo que, desta vez, quase todos estão escondidos em casa, distraindo-se com outras coisas. Sendo assim, inverto o papel e pensarei eu neles. Profundamente ofendida por não ser recebida entre multidões desavisadas como outrora, recorro à tecnologia para encontrá-los. Embora minha eficácia diminua um tanto por este meio, resta-me a desinformação que, tanto quanto um vírus, posso ainda espalhar.
Há muitos anos, milhares deles, cumpro seriamente o meu dever. Não cabe a mim revelar as razões de meu ofício. Isso é lá coisa para filósofos, teólogos e artistas que, desde antes do livro de Jó aos tempos de hoje, procuram entender quem sou eu, afinal de contas. Sinto-me sempre envaidecida por tamanha veneração. Muito embora duvidem da honestidade e proveniência do meu labor, fato é que a foice que trago em mãos chega a perder o fio por conta de tantas colheitas: laboriosidade não me falta.
Mas, como dizia (as divagações são frequentes quando se fica assim velha), nunca abandono meu dever de ameaçar e colher, uma a uma e a seu tempo, cada vida humana. É verdade, porém, que uma ocupação tão conspícua não possa se privar de solenidades. Às vezes, em minhas vestes negras de gala, passeio cerimoniosamente pelas ruas; ceifo centenas, milhares, milhões de vidas de uma só vez. Não sente o leitor um calafrio na espinha só de ler isso? Pois bem. Estou de volta.
Praga, Peste, Pandemia… a etiqueta exige roupas novas a cada evento. E, se os homens têm suas meditações a meu respeito, também eu tenho cá minhas considerações sobre eles. O tal Aristóteles, por exemplo; já notaram quanto esforço fez para definir o que é o homem? Sua definição mais famosa, a de “animal racional”, muito me impressiona, pois qualquer olhada rápida nos livros de História (e, pelo que tenho lido, também nas últimas manchetes de jornais) parecem indicar justamente o contrário. Por sua vez, a definição de “animal político” me soa tão peculiar quanto. Observando atentamente a atividade que os homens chamam de política, só concedo tal definição se política for aquela mesma virtude que os porcos no chiqueiro tão bem cultivam: a de dormirem juntinhos para aquecer cada qual a própria pança. Se for assim, é preferível ficar com a definição platônica de bípede implume: ao menos é engraçada! Parece até que racionalidade e política são inversamente proporcionais, não? Como poderiam ambas definirem um só sujeito?
Ao mesmo tempo, para meu espanto e confusão, observo ali, naquele laboratório, o esforço que a ciência humana emprega para, em tempo recorde, mapear o genoma do vírus que acabei de soltar no mundo. Em outras casas, laboratórios e bibliotecas, vejo doutores, professores, pesquisadores, dia e noite debruçados sobre seus livros para cultivar a razão; nas ruas, hospitais, farmácias e comércios, tantos outros empenhados em servir ao próximo, mesmo a custo da própria vida. Devo reconhecer a nobreza do esforço conjunto para atrasar e amenizar mutuamente as dores do inevitável encontro comigo; e talvez isso seja a verdadeira política dos homens.
Nesses casos, e somente nesses, entendo o que é um animal racional e político, mas tenho notado que todas as características humanas são assim heterogêneas, como um cobertor pequeno que cobre um membro deixando outro sem amparo. Por isso, faço questão de visitar um a um desses que são meu objeto de estudo, a fim de conhecê-lo cada vez melhor.
Há ainda outra definição, também apontada pelo mesmo filósofo, que chega a ser insuportável para um gênio tão grave quanto o meu. O riso. Nada me humilha mais que os homens fazendo comédias, danças, azurrados e, hoje em dia, esses tais de… memes! … em meio à minha visita. Arra! Sou uma Senhora respeitável! Não compreendo como é possível e que vil alegria seja essa capaz de encher de esperança os olhos e as bocas escancaradas cheias (ou não tão cheias assim) de dentes, mesmo quando eu estou chegando. E há muito que venho investigando o motivo do riso humano me irritar tanto.
Certa vez, um grupo de dez jovens florentinos, na mesma situação que o Leitor se encontra hoje, refugiou-se em quarentena no campo, a fim de fugir de minha visita. À época, eu trajava vestes de Peste Negra. Observei de longe os jovens, nobres e muito virtuosos, para novamente buscar entender a curiosa condição humana. Quanto mais narravam estórias sobre homens e mulheres de diversas condutas, mais se alegravam e protegiam uns aos outros, com seus risos, de meus olhares. Poderia mesmo dizer que mais rosavam as faces, tornando-se mais saudáveis de corpo e mais leves de espírito.
Aos homens que hoje estão protegidos em casa, atrasando nosso encontro, espero ao menos que o façam com a mesma qualidade que esses jovens quais me vi obrigada a poupar a vida, permitindo que fossem imortalizados sob o título de Decameron, pelo escritor que, de tanto narrar estórias e rir, também se tornou imune à minha presença. “O homem é um animal que ri”, disse Aristóteles. Eu, Morte, digo antes que o riso é produto final de uma qualidade superior: o homem é um animal que narra e, narrando, percebe que tudo é risível, pois, ao fim e ao cabo, é a narrativa que torna o homem o que ele é: um animal imortal.
Cássio & Heloísa:
Viva! Salve! Uêba! E tudo com grande exclamação que me venha, nos venha.
A Heloísa é uma conquista para a #RecorteLírico. Estou feliz de estar na cia. dela.
Ainda bem que não me chamo Abelardo…
Abraço do Beto.
Hahahaha!!!
Excelente ter todos vocês nessa missão que é o Recorte Lírico em minha vida. Compartilhar essa ideia é uma dádiva para mim.
Obrigado!
Ah, imagina. Gentileza de vocês. Fico muito feliz de fazer parte do time. (e, olha o perigo: Adalberto é anagrama de Abelardo! haha)
É um texto que dá margem a uma reflexão interessantíssima sobre a condição humana. Muito bom.
Bravo Helô! Já tinha o prazer de te lê em poesia. Na crônica ainda não. Abraço