Meditação sobre os homens

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Heloísa Gusmão
gusmao.helo@gmail.com

“Um homem são é aquele que tem a tragédia em seu coração e a comédia em sua cabeça .”

(G.K. Chesterton)

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É muito comum que os homens pensem em mim quando me aproximo. Mas vejo que, desta vez, quase todos estão escondidos em casa, distraindo-se com outras coisas. Sendo assim, inverto o papel e pensarei eu neles. Profundamente ofendida por não ser recebida entre multidões desavisadas como outrora, recorro à tecnologia para encontrá-los. Embora minha eficácia diminua um tanto por este meio, resta-me a desinformação que, tanto quanto um vírus, posso ainda espalhar.

Há muitos anos, milhares deles, cumpro seriamente o meu dever. Não cabe a mim revelar as razões de meu ofício. Isso é lá coisa para filósofos, teólogos e artistas que, desde antes do livro de Jó aos tempos de hoje, procuram entender quem sou eu, afinal de contas. Sinto-me sempre envaidecida por tamanha veneração. Muito embora duvidem da honestidade e proveniência do meu labor, fato é que a foice que trago em mãos chega a perder o fio por conta de tantas colheitas: laboriosidade não me falta.

File:Gonzalo Carrasco - Job on the Dunghill - Google Art Project.jpg
Jó no Esterco (Gonzalo Carrasco, 1881)

Mas, como dizia (as divagações são frequentes quando se fica assim velha), nunca abandono meu dever de ameaçar e colher, uma a uma e a seu tempo, cada vida humana. É verdade, porém, que uma ocupação tão conspícua não possa se privar de solenidades. Às vezes, em minhas vestes negras de gala, passeio cerimoniosamente pelas ruas; ceifo centenas, milhares, milhões de vidas de uma só vez. Não sente o leitor um calafrio na espinha só de ler isso? Pois bem. Estou de volta. 

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Meditação sobre os homens 1
Dança Macabra (Bernt Notke, sec. XV)

Praga, Peste, Pandemia… a etiqueta exige roupas novas a cada evento. E, se os homens têm suas meditações a meu respeito, também eu tenho cá minhas considerações sobre eles. O tal Aristóteles, por exemplo; já notaram quanto esforço fez para definir o que é o homem? Sua definição mais famosa, a de “animal racional”, muito me impressiona, pois qualquer olhada rápida nos livros de História (e, pelo que tenho lido, também nas últimas manchetes de jornais) parecem indicar justamente o contrário. Por sua vez, a definição de “animal político” me soa tão peculiar quanto. Observando atentamente a atividade que os homens chamam de política, só concedo tal definição se política for aquela mesma virtude que os porcos no chiqueiro tão bem cultivam: a de dormirem juntinhos para aquecer cada qual a própria pança. Se for assim, é preferível ficar com a definição platônica de bípede implume: ao menos é engraçada! Parece até que racionalidade e política são inversamente proporcionais, não? Como poderiam ambas definirem um só sujeito?

Ao mesmo tempo, para meu espanto e confusão, observo ali, naquele laboratório, o esforço que a ciência humana emprega para, em tempo recorde, mapear o genoma do vírus que acabei de soltar no mundo. Em outras casas, laboratórios e bibliotecas, vejo doutores, professores, pesquisadores, dia e noite debruçados sobre seus livros para cultivar a razão; nas ruas, hospitais, farmácias e comércios, tantos outros empenhados em servir ao próximo, mesmo a custo da própria vida. Devo reconhecer a nobreza do esforço conjunto para atrasar e amenizar mutuamente as dores do inevitável encontro comigo; e talvez isso seja a verdadeira política dos homens. 

Nesses casos, e somente nesses, entendo o que é um animal racional e político, mas tenho notado que todas as características humanas são assim heterogêneas, como um cobertor pequeno que cobre um membro deixando outro sem amparo. Por isso, faço questão de visitar um a um desses que são meu objeto de estudo, a fim de conhecê-lo cada vez melhor. 

Há ainda outra definição, também apontada pelo mesmo filósofo, que chega a ser insuportável para um gênio tão grave quanto o meu. O riso. Nada me humilha mais que os homens fazendo comédias, danças, azurrados e, hoje em dia, esses tais de… memes! … em meio à minha visita. Arra! Sou uma Senhora respeitável! Não compreendo como é possível e que vil alegria seja essa capaz de encher de esperança os olhos e as bocas escancaradas cheias (ou não tão cheias assim) de dentes, mesmo quando eu estou chegando. E há muito que venho investigando o motivo do riso humano me irritar tanto.

Certa vez, um grupo de dez jovens florentinos, na mesma situação que o Leitor se encontra hoje, refugiou-se em quarentena no campo, a fim de fugir de minha visita. À época, eu trajava vestes de Peste Negra. Observei de longe os jovens, nobres e muito virtuosos, para novamente buscar entender a curiosa condição humana. Quanto mais narravam estórias sobre homens e mulheres de diversas condutas, mais se alegravam e protegiam uns aos outros, com seus risos, de meus olhares. Poderia mesmo dizer que mais rosavam as faces, tornando-se mais saudáveis de corpo e mais leves de espírito.

File:Waterhouse decameron.jpg
Um conto do Decamerão (J.W. Waterhouse, 1916)

Aos homens que hoje estão protegidos em casa, atrasando nosso encontro, espero ao menos que o façam com a mesma qualidade que esses jovens quais me vi obrigada a poupar a vida, permitindo que fossem imortalizados sob o título de Decameron, pelo escritor que, de tanto narrar estórias e rir, também se tornou imune à minha presença. “O homem é um animal que ri”, disse Aristóteles. Eu, Morte, digo antes que o riso é produto final de uma qualidade superior: o homem é um animal que narra e, narrando, percebe que tudo é risível, pois, ao fim e ao cabo, é a narrativa que torna o homem o que ele é: um animal imortal.

5 thoughts on “Meditação sobre os homens

  1. Cássio & Heloísa:
    Viva! Salve! Uêba! E tudo com grande exclamação que me venha, nos venha.
    A Heloísa é uma conquista para a #RecorteLírico. Estou feliz de estar na cia. dela.
    Ainda bem que não me chamo Abelardo…
    Abraço do Beto.

    1. Ah, imagina. Gentileza de vocês. Fico muito feliz de fazer parte do time. (e, olha o perigo: Adalberto é anagrama de Abelardo! haha)

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