O silêncio do céu fala sobre estupro e o medo

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Um homem que tinha pavor de viajar de avião, mas que na verdade tinha medo do céu. Uma mulher que foi estuprada, e, calada, escondeu de todos o abuso sofrido. Essa é a tônica do bom filme do diretor Marco Dutra, “O silêncio do céu“. Um drama carregado com toda a profundidade psicológica das personagens que o gênero exige.

A maior parte do filme é falado em espanhol, mas os momentos do bom e velho português nos lábios da Carolina Dieckman, que me surpreendeu muito em sua atuação, e na música do Tom Jobim, ecoando no som automotivo das personagens, fizeram-me amar ainda mais essa dança linguística dos filmes latino-americanos.

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Leonardo Sbaraglia faz o roteirista Mario, sujeito intelectual, ora distante (física e psicologicamente) da família, reaparece num momento infeliz; sua esposa Diana, interpretada pela Dieckmann, é abusada sexualmente dentro da sua própria casa, e, pasmem (!), o marido presencia toda a cena, mas permanece imóvel, talvez perplexo pela crueldade vista ou entregue aos seus medos, que mais tarde são explorados com ótima vastidão narrativa.

Diana, entre os envolvidos, é a que menos tem profundidade psicológica na trama, que é narrada quase todo o tempo por Mario. Ela sofre a dor de alguém que foi abusada não só fisicamente, porque as consequências que a violência traz na vida dela são irreparáveis, como acontece com todas as vítimas desse crime brutal. Viver com pensamentos de terror, pesadelos constantes e até perseguição do criminoso são recorrentes em quase todas as cenas que ela protagoniza.

Ah!, aqui abro um parêntese para elogiar a performance de Carolina Dieckmann, que bela atuação! Sempre tive um “pé atrás” com suas personagens, achava-a superficial, e até criei um estigma que ela foi atriz de uma personagem só, no caso a de Camila em “Laços de Família”, telenovela da Rede Globo. A atriz provou-me que pode ser, e é, mais do que àquela personagem de relativo sucesso nacional. Além de linda, mostrou-se segura com o espanhol e trouxe-nos mais do que os “clichês globais” recorrentes de sua emissora.

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Mas, a grande personagem dessa obra é o medo. Lógico que o Sbaraglia mandou bem no papel de Mario, porém a abordagem que é dada ao sentimento cruel sentido por ele – talvez tão cruel quanto à abordagem dada ao crime do estupro em si – é genialmente melancólico. As tensões provocadas por suas antigas fobias são potencializadas com a inesperada situação de testemunha do abuso sexual da sua própria esposa. Mario se sente oprimido. Mais ainda. O medo, repetido inúmeras vezes aqui e no longa, é uma constante na sua vida. E ele queria vencê-los, mas não enfrentando-os de frente. Mario queria vingança. E fez de tudo para concebê-la.

O silêncio do céu, uma co-produção Brasil-Uruguai, que teve origem a partir do livro “Era El Cielo”, de Sergio Bizzio, fala sobre um crime hediondo. Aborda um tema que, felizmente, resolvemos discuti-lo, muito embora com retardamento. No Brasil um caso acontece a cada 11 minutos. Apenas 35% dos casos são notificados. 70% das vítimas são crianças e adolescentes. Isso tem que parar. Precisamos parar de ter medo. Precisamos, ao menos, deixa-los de lado. Precisamos falar sobre as mulheres violentadas. Falar sobre a ineficiência da segurança pública nesses casos. Precisamos falar sobre os nossos medos. E enfrentá-los.

Se você curte filmes espanhóis, como O Silêncio do Céu, vai gostar também de “Um Contratempo“:

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