Jean Paul Sartre e os Diários de Guerra

Frank Wan

Jean Paul Sartre e os Diários de Guerra 1

Os “Diários de Guerra” (Carnets de la drôle de guerre) foram escritos por Jean Paul Sartre no período em que os escritor/filósofo prestou serviço militar no quadro da grande mobilização da II Grande Guerra. Sartre foi destacado para os serviços de meteorologia na Alsácia. Tendo muito tempo livre, passava os dias inteiros a escrever. Tal como em André Gide, a escrita não resultava apenas de alguma vaga tendência artística, era mesmo uma forma de estar no mundo, de fazer face ao mundo exterior e interior, o mundo era mediado/problematizado/sintetizado através da escrita.

Jean Paul Sartre e os Diários de Guerra
Jean-Paul Sartre (1905-1980) the French philosopher, and novelist, in uniform, ca. 1935-45. Image by © Hulton-Deutsch Collection/CORBIS

Este conjunto de cadernos que constitui os “diários” não está completo. Sobreviveram apenas os cadernos numerados 1, 3, 5, 11 e 14, todos os restantes se perderam. Segundo uma carta de Sartre a Simone de Beauvoir os cadernos seriam 15. A história do cânon dos cadernos daria toda uma odisseia: conta-se que um amigo perdeu a grande maioria dos cadernos num trem durante a guerra, outros terão sido destruídos nuns assaltos à casa de Sartre pela OAS (Organisation Armée Secrète) e outros ainda perdidos em mudanças de casa. Um dos cadernos apareceu magicamente do espólio de um bibliófilo e foi acrescentado a uma edição posterior à primeira edição. Sabe-se perfeitamente que subsistem outros cadernos, mas que os proprietários, por algum motivo, não os disponibilizam.

Neste modesto ensaio procuramos apenas dar umas imagens rápidas das temáticas transversais aos cadernos. Não sendo uma obra maior, os cadernos são uma obra de charneira, a sua leitura marca o prisma hermenêutico posterior. Evitaremos linhas de leitura dos que procuram lavar a imagem de Sartre, normalmente do mesmo clube dos hagiógrafos, e evitaremos a boçalidade natural dos que só veem um Sartre comunista e que fumou charutos com assassinos. Nem o tempo apagou esta gigantesca dificuldade que quase todos, dos admiradores aos mais severos detratores, têm em digerir a presença dominante na sua época e, de certa forma, simbólica e filosoficamente, ainda na nossa. Com erros (ou sem eles), Sartre não é um erudito, é o “intelectual total”, aquele que afere os seus pensamentos pelos seus atos. Numa linha que não cabe neste ensaio, pensamos, surpreendentemente para a maioria, que certos “erros” de ação resultam mais de lacunas no aparelho filosófico do que de más leituras da realidade e/ou más intenções.

Sartre encarna a típica figura do intelectual europeu do meio do século XX e pensar Sartre, estranhamente, é uma forma de pensar o séc XX e os seus inúmeros desvarios.

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(Foto: Reprodução/Domínio Público)

No momento em que escreve os “Cadernos”, Sartre tem 34 anos, foi mobilizado dia 2 de Setembro de 1939 para a Divisão 70 do Campo de Aviação Militar d’Essey-les-Nancy e tem como funções fazer sondagens meteorológicas. Rediz, neste período, os Diários, diversas cartas a Simone de Beauvoir e o grosso da “Idade da Razão”. Não era um escritor debutante, já tinha publicado com sucesso quer o Muro, quer a Náusea, bem como diversas obras importantes de filosofia.

De alguma forma não se trata de um “Diário”, mas de uma longa carta ou um relatório de acontecimentos e pensamentos para Simone de Beauvoir. No fundo, o suposto “diário” disfarça uma “carta” – quem frequenta Sartre, rapidamente se habitua ao fato que, nele, tudo nunca é o que parece, é sempre, de forma inteligente e subtil, outra coisa. Para quem conheça a evolução ulterior do pensamento filosófico de Sartre, observa com facilidade o nascimento de muitas temáticas espalhadas entre as entradas dos Diários. Simone é a interlocutora, leitora, destinatária ideal e idealizada, no fundo, é a forma que Sartre tem de dinamizar a sua escrita, de lhe dar sentido, alguma coesão e voz.

Sartre encontra-se em comunidade, em guerra, a viver em grupo e isso é fonte de uma profunda angústia, recorre então, para fazer frente à ansiedade, à sua medicação favorita: a escrita. O Diário é a forma conveniente para um ser solitário, angustiado, fragmentado e interiormente estilhaçado, uma vez que, qualquer diário, é uma forma fragmentada de escrita em que são plasmadas experiências e sentimentos, obviamente, não deixa de ser, isso é conhecido da Teoria da Literatura, uma variante de ficção romanesca, mas, apesar de tudo, permite um certo acesso à interioridade fazendo coexistir a ordem e a continuidade histórico-filosófica com a desordem e descontinuidade do eu fragmentado e dinâmico.

Se é verdade, tese que defenderei, que quase todo o pensamento filosófico posterior de Sartre já está indicado e tematizado nos Diários, não é menos verdade que Sartre escreve os Diários “contra a filosofia”: Sartre está filosoficamente no mundo, i.e., tem um pensamento sistematizado e estruturado sobre a realidade, mas pretende pensar de outro modo, pretende deixar de ter uma “postura” e passar a ser verdadeiro e espontâneo. Inicia, por isso, a escrita crua dos acontecimentos, sem dissimulações, aceitando as contradições inerentes e sem maquilhar as ambiguidades. Aparece nos diários um novo Sartre e uma nova prática literária: um homem em guerra, um homem mergulhado na história (e não no limbo filosófico), um Sartre cómico e cheio de idiossincrasias e uma nova forma literária: o Diário.

Muitos se perguntam, de forma ociosa e inconsequente, se Sartre é um escritor que faz filosofia ou um filósofo que escreve umas coisas de Literatura – por vezes, essa pergunta, esconde uma agenda crítica que rapidamente transparece. Ele é sempre os dois, queria ser, ao mesmo tempo, segundo ele próprio, Stendhal e Espinosa, o que é mais uma característica raríssima num autor, por muito que isso custe a algum dos lados, o grosso do seu pensamento não toma a forma do discurso linear filosófico, por muito pesada, em quilogramas, segundo a piada, que seja o “L’Être et le Néant”, é um pensamento sempre embrulhado na “representação teatral”, no baile de máscaras e que, de certa forma, tanto agrada ao leitor moderno que está pouco disponível para longos discursos em tom professoral-académico: repare-se que, toda a beleza literária da “Náusea” esconde um conjunto vasto de teses filosóficas.

Sartre não está em situação de combate, não troca tiros em alguma trincheira, aliás, esta guerra é, em tudo, nova para todos, é uma guerra muito psicológica e social (“guerra chinesa”, “guerra à Kafka”, “guerra fantasma”) uma guerra invisível e intocável, uma guerra dentro dos moldes do “Processo” de Kafka e é daí que os cadernos vão tomar o nome Cadernos de uma Guerra Estranha. Os cadernos têm um pouco de Diário Íntimo e alguma coisa de reflexão em torno da situação social, humana e política. Sartre, bem conhecido por ser um autêntico “stand up comedian” quando em grupo, acrescenta-lhe qualquer coisa de “romance pícaro”, obviamente, que nestas situações, há a clássica mistura militar de pessoas de origem heterogénea tão fértil de situações cómicas e de pessoas de fácil caricatura.

Os personagens imediatos da comédia dos Cadernos são os seus três camaradas de armas imediatos, os seus três “acólitos” , como ele lhes chama: Paul, Pieter e Mistler. Sartre, evidentemente, despreza-os profundamente. Em diversas ocasiões explicou, de forma simplificada, que “só gostava de mulheres”, era preciso que um homem fosse excecionalmente educado e inteligente para Sartre ter com ele alguma intimidade – acrescenta ainda outras características e leituras desta tendência, mas que são irrelevantes para o tema deste ensaio. Ao longo do diário vai analisando e registrando os atos e acontecimentos relacionados com os três colegas, mas, obviamente, o personagem central é o próprio Sartre e é curioso que os cadernos permitam o aparecimento do Sartre de todos os dias, ele mesmo procura registrar-se e à sua evolução no fio do tempo. No fundo, a guerra é a situação em que o homem é colocado de forma premente perante a morte, não a morte potencial e inevitável que surgirá um dia num futuro vago, mas a morte que pode surgir a qualquer momento e em qualquer circunstância a um número muito maior de pessoas, na guerra morre-se, é-se exposto ao sofrimento, seu e dos outros e é-se obrigado a viver a vida numa modalidade, muitas vezes, de sobrevivência com mínimos. Este fantasma da morte e do sofrimento vai erguer todas as temáticas clássicas do existencialismo. Nos Cadernos Sartre traz à vida personagens reais e consegue mostrar esse lado romanesco da vida: as pessoas “reais” que o rodeiam e as respetivas situações são muito mais literárias do que as personagens dos seus romances.

Os cadernos aparecem após a Náusea e são seguidos de toda a angustia existencial e existencialista. Vemos assim desfilar diante dos olhos do leitor, de forma fragmentada, todas as grande temáticas ulteriores: o ser e o nada, o ser-em-si e o ser-para-si; a escolha e a liberdade; a vontade e a transcendência; a autenticidade versus a inautenticidade; a realidade humana e o ser-no-mundo; o tempo e a historicidade.

Revela-se nos Diários um lado “neurótico” de Sartre: o grafómano, o escriba, o maníaco da escrita, um “mero” colecionador histérico de cadernos escritos com a sua caligrafia – lembrando, em certa medida, a decisão estranha e importante de Marcel Proust de passar ele também, num dado momento, a escrever em cadernos.

A escrita dos Carnets tem já a marca total da ausência de forma e da explosão pós-moderna: é fragmentada, irónica, cómica, por vezes sarcástica, autobiográfica, filosófica com muito de Crítica Literária, registo histórico, descrições, anedotas, piadas simples, retratos, ensaios de carater moral, confidências, pequenas reportagens, perfis de pessoas, notas autobiográficas, fragmentos de crítica literária, reflexões políticas e históricas, exercícios de estilo e, nisto tudo, mistura-se o real e o fantasiado, o verdadeiro e o inverosímil.

 

 

Texto de estreia do Frank Wan para o blog Recorte Lírico.

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