Uma felicidade barata ou um sofrimento elevado?
Para Aristóteles, uma das características de uma boa tragédia é aquela personagem com sentimentos e ações nobres. Melhor exemplo disso, na literatura clássica, é Heitor, filho mais velho e herdeiro do rei troiano Príamo. Descrito por Homero como um homem belo e justo, Heitor morre nas mãos do grande Aquiles depois de, por engano, ter matado o primo amado do guerreiro grego. Em vez de fugir ou tentar desculpar-se como se fizesse pouco caso, o príncipe troiano decidiu agir como um homem de honra e enfrentar o semi-deus, com a certeza de que morreria, mas com a dívida paga.
Mas até onde podemos fazer comparações entre esses grandes homens da literatura clássica e nós, meros mortais pós-modernos? Estaríamos, de fato, dispostos a entrar em um duelo com a certeza da morte simplesmente para demonstrar máxima honestidade, honra e coragem? De quantas batalhas já não fugimos, covardemente, e não era nem contra um semi-deus…
Em sua obra “Memórias do Subsolo”, Fiodor Dostoiévski explora de forma brilhante as características da psique humana que Aristóteles chamaria de “sentimentos menores”. A raiva descontrolada, o desinteresse pelo trabalho, sexo descompromissado, a inveja e o rancor são alguns desses sentimentos que se alojam no “subsolo” da consciência da personagem principal, um homem de 40 anos.
O livro é dividido em duas partes: na primeira, o narrador se apresenta, conta um pouco de sua vida desde a infância, mas a maior parte é dedicada às densas reflexões sobre a natureza humana, marca tão característica de Dostoiéviski. Na segunda parte, embora as reflexões não cessem, o narrador conta duas situações em particular que o fazem remoer-se em agonia desde então.
Uma das partes mais interessantes é a que o narrador, discorrendo acerca da incapacidade humana de sentir-se plenamente satisfeito com o que tem, demonstra que, mesmo que o ser humano não precisasse trabalhar por nada e tivesse apenas a preocupação de, em suas palavras, “ocupar-se com a perpetuação da espécie”, ainda assim, e principalmente assim, desistiria de todas as facilidades que são oferecidas gratuitamente para ir à procura de algo que lhe traga genuína preocupação e tormento, inclusive o sofrimento.
“O ruim (…) é que as pessoas então talvez se sintam felizes com alfinetes de ouro. Pois o homem é estúpido, de uma estupidez fenomenal. Ou melhor, embora ele não seja de todo néscio, não há nada no mundo que seja tão ingrato.”
Assim, a pergunta principal do livro é: o que vale mais a pena para nossa essência tão corrupta e insatisfeita: uma felicidade barata ou um sofrimento elevado?
O narrador não responde a pergunta, não mostra muitos arrependimentos ou acertos. Como bom existencialista, encara o passado e o presente como eles se apresentam, crua e friamente, com a consciência de que ele e somente ele é responsável pelas desgraças que o acometeram.
Para finalizar, vale a reflexão que o autor, como cristão ortodoxo, faz sobre cosmovisão. Certamente é algo sobre o qual temos muito que meditar:
“Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com a razão e com todo coçar-se.”
Excelente texto. Me pergunto frequentemente sobre esse sofrer nobre e a felicidade pequena. Fico com a vontade que me vem. Aprendendo serenamente a fazer o que é de mais honesto que desejo na hora que desejo. Pode ser um caminho hoje. Amanhã não sei.
É isso, meu caro… Obrigado!