Paulicéia Desvairada: o prefácio é mais manifesto que a obra
A Semana de Arte Moderna, evento realizado no Teatro Municipal de São Paulo, inaugurou a fase modernista das principais expressões artísticas do Brasil. Um dos grandes expoentes desse movimento é o autor Mário de Andrade, tão paulistano quanto o evento, que escreveu, dentre tantos outros títulos relevantes, “Paulicéia desvairada”. Em seu prefácio, o autor produz um verdadeiro manifesto – muito embora o próprio Mário esquive-se de tal feito – o que norteou a primeira fase do Modernismo no país.
Para efeito de análise do livro como se propõe, já em sua primeira linha tem-se uma característica importante do modernismo, o não pragmatismo: “Este prefácio, apesar de interessante, inútil”. Embora se tenha intenção de impressionar (e essa palavra é relevante para o movimento), busca-se um modus operandi focado nas coisas práticas, cotidianas, ‘inúteis’, como o próprio Andrade intitula este corpus analisado. E essa ‘inutilidade’ nasce d’outra importante característica vanguardista, mais precisamente do futurismo, a velocidade, explicitado pelo próprio autor no trecho a seguir: “Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi”.
Não obstante vários fragmentos, como o anterior, que denunciam Mário como um vanguardista, o escritor paulista afirma categoricamente não sê-lo: “Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo”. Digo e também repito: Futurista e dadaísta, lógico, influenciado com ideais que não são realmente seus, mas, com categoria, apropriou-se. Seu dadaísmo está no fluxo de consciência, metalinguísticamente avalizado no penúltimo excerto citado, que foi extraído do seu prefácio.
Mário levantava também a bandeira peculiar dos modernistas de 1922, a do nacionalismo. Até por esse motivo elogia, mais de uma vez, as especificidades da nossa Gramática: “A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo “ão””. Aqui, ressalta a brasilidade da língua, não em detrimento da língua-matriz, mas para exaltar a nossa arte, a da palavra. Aqui, de certa forma, “caímos” no expressionismo, com suas “combinações rítmicas, cortes surpreendentes, (e) o jogo de imagens ousadas” (D’ONOFRIO, 2004).
A definição do Salvatore D’onofrio vai de encontro justamente ao que o Mário de Andrade propõe em seu “manifesto”. A língua brasileira é suficientemente capaz de expressar, em sua arte literária, essa musicalidade, essa quase nada ação racional, pelo contrário, é o ato de transmitir, num papel, tudo o que o subconsciente lhe propõe; “A inspiração é fugaz, violenta“. Entretanto, mesmo tendo todo esse rompimento com a forma de se compor, o autor é enfático ao afirmar que a liberdade não pode ser sistema: “É apenas auxiliar poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que meu copo é grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros”.
Andrade ainda propõe à poesia, ao que a chama de ‘atrasada’, aproximar-se da música, moderna, segundo o autor, visto que consegue produzir ‘harmonia’. É exatamente ao ato de harmonizar-se que podemos interpretar a maior aproximação do poeta ao movimento cubista: (…) fizemos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias.”. Esse encaixe de palavras não necessariamente ligadas entre si o que é senão uma ideia do Cubismo?! Pensar numa poesia fragmentada, com repetições, ganhando formas geométricas é a mais pura estética vanguardista que os artistas brasileiros do século XX tanto tentaram reproduzir nacionalmente.
Por último, mas não menos importante, pelo contrário, o surrealismo é o movimento vanguardista mais psicológico dentre os citados nesta análise, muito em função por ter suas bases nas teorias de Freud, segundo D’onofrio (2004). Para atrelar o movimento ao Mário de Andrade, iremos, inegavelmente, perceber que o próprio adjetivo no título da obra já remete ao tema: “desvairada”, há qualquer coisa de psíquico nisso. No prefácio em si, Mário é mais comedido no tocante ao surrealismo, mas traz marcas: “Versos cantam-se, urram-se, choram-se”. Esse rompimento da parede entre a razão e a ilusão, o mundo dos sonhos, provoca, no autor e no leitor, sensações múltiplas providas da liberdade estética, liberdade essa que o autor encerra o prefácio de forma enfática citando Gorch Fock: “Toda canção de liberdade vem do cárcere”. Está posto o manifesto modernista brasileiro.