O Cus de Judas de Lobo Antunes, um exorcismo africano
Neste pequeno e rápido ensaio deixo apenas umas pequenas impressões de leitura, descrições gerais e algum levantamento temático do romance Cus de Judas de António Lobo Antunes.
Um livro aparentemente autobiográfico, nele fica plasmada a experiência pessoal do autor como médico-militar e participante na Guerra Colonial Portuguesa.
Até 1961, Portugal manteve um conjunto de territórios em África que se apelidavam de “províncias ultramarinas”, abarcando territórios como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, a partir deste ano, embora com origens mais remotas, organizaram-se em cada território diversos “movimentos de libertação” que visavam a independência do Estado Português. A chamada “Guerra de África” é, justamente, o confronto entre as Forças Armadas Portuguesas e os Movimentos de Libertação. Esta guerra só terminará, quase totalmente, com a Revolução de 25 de abril de 1974 que põe fim ao regime do Estado Novo, Golpe de Estado também conhecido como a “Revolução dos Cravos”.
Em os Cus de Judas, Lobo Antunes “acerta contas” com tudo e todos, embora não tenha a linguagem militar, vulgar, de caserna do Memória de Elefante, está ainda na ressaca do “retorno” da guerra, é ainda um “retornado” cheio de demónios interiores, de imagens de morte e sofrimento, um traumatizado, um amputado emocional de guerra.
George Steiner tem o mérito de ter procurado sempre dar visibilidade à obra antonina, comete, no entanto, o erro de centrar a leitura da obra totalmente na sua experiência de guerra: penso que o autor enquanto revisita a experiência de guerra, faz refletir nela toda a sua vivência pessoal desde a infância e não se trata apenas de uma natural auto-análise de um médico-psiquiatra, Lobo Antunes procura uma outra coisa que está muito além da guerra e que se esconde por debaixo do seu evidente barulho e concomitante sofrimento – da mesma forma que, num doente de cancro, para além da doença e da sua “luta” com a mesma, há sempre uma outra luta muito mais velha, profunda e devastadora que se esconde na origem dos tempos pessoais, Lobo Antunes conhece todas estas “guerras”, uma vez que é, ele também, sobrevivente a três cancros.
O Cus de Judas é escrito numa linguagem barroca e polifónica, o romance não visa uma qualquer “verdade”, visa deixar vir à tona alguma coisa que foi soterrada no discurso oficial e ideológico, visa mesmo desconstruir a linguagem plástica e a visão ideológica oficiais, centra-se num indivíduo, nas suas memórias e sofrimento, mostrando assim o efeito pessoal que tinham os moinhos de vento como “a missão civilizadora do Império” e outras absurdos ideológicos em nome dos quais se cometeram diversas barbaridades que sempre se procuraram silenciar. A primeira vítima do esforço de guerra são os mais pobres, a classe social que paga a fatura dos decisores e que, até 1974, eram esquecidos, o autor escreve num momento em que o “povo português” se redescobre, se reconhece, se revê, se repensa e procura ainda uma linguagem. É o romance na “nova” Literatura portuguesa filha da Revolução, filha do fim da Censura e é, num plano muito mais vasto, o início da dessacralização do Império.
Depois da viagem a África, o Ulisses retornado, procura-se: foi, voltou outro e volta para uma outra Lisboa transformada. A alternância narrativa dos planos reflete, literariamente, os saltos da mente: está sempre presente e ausente. Sente-se um certo inebriamento da voz narrativa, como se o militar ainda estivesse entorpecido pelo muito álcool a que recorreu para apaziguar a dor – o campo lexical da bebida alcoólica está sempre presente: um dos grandes planos da obra é o bar (apartamento) que dialoga com o passado angolano e com as diversas ausências. Este anti-Ulisses não regressa a uma fiel Penélope, regressa ao divórcio, à frequência do bas fond lisboeta, à sórdida vida noturna substituta da vida familiar. Quase se poderia dizer que a obra de Lobo Antunes é mais sobre a família e o indivíduo que dela resulta do que sobre a guerra. É a família que o trai, o grande Judas da vida é a família: foi ela que não o preparou para a guerra, foi ela que pactuou com o regime vigente assumindo ideais hipócritas, foi ela que lhe ensinou com a boca um código moral, religioso e conservador, no pior sentido da palavra, quando, simultaneamente, os grandes pilares da família eram vistos a frequentar os quartos das criadas. É essa impreparação familiar, sexual e humana que o vai levar a desastres amorosos e emocionais sucessivos.
Para muitos, Lobo Antunes não passa de um imitador palavroso, por exemplo, de Faulkner e, para muitos outros, um dos grandes escritores do nosso tempo e até mesmo, sob certos critérios, o maior escritor vivo. Não sendo exaustivo, a obra antunina em geral e o Cus de Judas em particular, tem muitos elementos típicos do grande escritor moderno, tal como Joyce ou Proust, tudo é e não é: Ulysses dificilmente é um “Romance”, no meio do labirinto dos puzzles linguísticos, perpassa uma coisa que está para além do “romance”; e a Busca do tempo perdido, segundo o próprio autor, nem é um romance, é um Tratado de Estética. Tudo no Cus de Judas é e não é, qual valsa de fantasmas, à semelhança da guerra em África, uma guerra de guerrilha em que, para desespero emocional, militar e semiótico, o inimigo nunca era visto, surgia do nada com uma capacidade de destruição aterradora.
O Cus de Judas denuncia tudo e todos, é uma obra, de um certo ponto de vista, de engajamento político… e não é. É uma obra moderna com o recurso literário ao fluxo de consciência, mas não há nela apenas uma maré de sensações, há toda uma estrutura de denúncia política sem ser na forma usual de panfleto, artigo, ensaio ou outro. Enquanto a voz narrativa descreve situações que viveu, faz eco ao que sentiam muitos dos militares portugueses participantes numa guerra absurda com a qual não se identificavam. O autor não recorre à denúncia política direta, tipo “J’accuse”, prefere descrever crua, fria e realisticamente os acontecimentos que presenciou para estes falarem por si – não é por acaso que que é ainda um romance classificado como neo-realista. Nem o título é casual, Cus de Judas, expressão popular que refere tudo o que é longínquo e que se pretende que mantenha longe, é uma antifonia ao bordão do regime “Deus, Pátria e Família”: Deus, à semelhança de Auschwitz, nunca poderia estar presente naquela guerra absurda, quem estava presente era Judas, a grande figura da traição; a Pátria era tudo o que se destruía e a guerra desestruturou praticamente todas as famílias e até o conceito de família em si.
E assim termina o sonho do Império e se regressa à dura realidade da dor, da solidão e do tamanho real: a pequenez – os pequenos apartamentos de Lisboa, as ruas estreitas, os cafés minúsculos, os bares sórdidos e deprimentes da Lisboa de finais de 70. Acabou o sonho brasileiro, o delírio indiano e o exotismo africano, agora Portugal reconstrói-se e enfrenta-se na sua inevitabilidade: um povo e um país pequeno com um gigantesco atraso europeu.