O Romance dos Três Reinos – Parte 2 – Educação e Imitação

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Leia, antes, o primeiro ensaio sobre O Romance dos Três Reinos, por William Passarini

O Império Han está prestes a desabar. Desastres ambientais, terremotos e enchentes assolam toda a China. Epidemias, fome, miséria aumentam ainda mais o sofrimento do povo chinês. Fenômenos celestes, eclipses, a aparição de uma serpente no assento imperial pressagiam a queda do governo. O poder dos eunucos corruptos, apesar de tudo, segue cada vez mais forte.

Em meio a tudo isso, um homem respeitado, morador de uma humilde vila chinesa, chamado Zhang Jiao, cumprindo seu trabalho de manhã, caminha em direção a uma pequena colina. Mas algo de estranho acontece, um vento começa a acordar repentinamente e se transforma em um velho, se transforma no espírito do Eremita da Colina. Esse velho leva Zhang Jiao até uma caverna e ali lhe transmite um pergaminho com ensinamentos sagrados de religião, astrologia, medicina, etc. Zhang Jiao jura se dedicar profundamente nesses estudos, de modo que possa com eles salvar seu povo de tanto sofrimento. A partir de então, ele vive recluso em sua casa, até que um dia uma epidemia assola sua região, cadáveres começam a se espalhar por todo o chão. Finalmente Zhang Jiao sai de sua reclusão: com os ensinamentos adquiridos pôde desenvolver um medicamento que curasse as pessoas e acabasse com essa epidemia.

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Em pouco tempo, sua fama aumentou por toda a região, era considerado um herói. Tornou-se um agregador de pessoas. E essa foi a ocasião que o despertou para o fato de que com apoio popular ele poderia destituir o império em decadência. Assim ele monta um exército que lutaria contra a corrupção do Han. Sua marca de usar um turbante amarelo virou símbolo de todo o grupo, que passou a ser reconhecido por essa marca característica: “Turbantes Amarelos”.

O Romance dos Três Reinos - Parte 2
Zhang Jiao e o Eremita da Montanha – Mangá Sangokushi, de Yokoyama Mitsuteru.

Mas em pouco tempo esse grupo perdeu o autocontrole, tornando-se o oposto do objetivo inicial, trazendo mais violência do que já havia. E felizmente tornou-se um movimento frustrado quando destruído pelos grandes generais recrutados pelo imperador.

Esse foi o fim de um movimento que buscava estabelecer a paz no império. Essa história nos impressiona por sua mistura de misticismo, heroísmo, ação popular e também pela mudança repentina do espírito desse movimento. Assim, essa história transforma-se num modelo, que, se impactado em nossa alma, pode ficar gravado nela por toda a vida. E são histórias como essas que tornam o “Romance dos Três Reinos” uma história profundamente educativa.

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A base da educação é a imitação. Há uma hierarquia de complexidade das ações humanas e, por sua vez, de complexidade de liberdade envolvida nessas respectivas ações, que percorrem uma ascensão de liberdade que vai desde a ação manual (aparentemente absolutamente mecânica) do operário, passa pela luta do artista para modelar os materiais à imagem de uma forma mental, até a ação do sábio ou santo, a mais complexa de todas e por sua vez a mais simples: a ação pela presença, a não-ação — Wu Wei.

Mas a base dessas ações está num modelo imitável. Antes de o operário conseguir realizar seus movimentos inconscientemente, ele deve possuir algum modelo com base no qual ele age, ele primeiro o copia para depois naturalizar e individualizar seus movimentos.

A questão está em saber o que se entende por imitação. Seria a simples cópia mecânica de regras pré-fixadas? Não. A imitação de que estou falando, a base da educação, é fundamentalmente o encontro, a comunicação de uma pessoa, de uma personalidade, com outra.

Todos que já tiveram alguma experiência artística, ou que viram algum grande artista no processo de criação entenderá perfeitamente isso. O artista transmite mais por sua ação física do que por aquilo que diz. Sua pessoa transmite coisas que não conseguimos dizer. E é nesse encontro de pessoas, aluno e mestre, que se dá a imitação. Uma personalidade comove-nos a ponto de desejarmos ser como ela é.

Em momentos de quarentena, de isolamento social, coisas mais básicas, que geralmente tomamos como banalidades, se nos mostraram como absolutamente importantes. Todas as civilizações são criadas pelos contatos humanos, não-virtuais, físicos. Essa comunicação por meio de presenças é que estrutura e move sociedades. Assim como quando perdemos um sentido é que lhe damos o seu valor, do mesmo modo hoje percebemos o valor das relações físicas.

Claro que o fim da educação não é a imitação, é a descoberta e criação da própria individualidade do aluno, que por sua vez será um novo modelo a ser imitado. Mas a descoberta da individualidade tem de passar antes pelo processo da imitação.

No “Romance dos Três Reinos” há belíssimos exemplos de possibilidades humanas, de presenças, claro que imaginativas, que nos impressionam e tornam-se modelos a serem seguidos ou evitados.

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Juramento do jardim de pêssegos no Sangokushi 12. Da esquerda para a direita: Zhang Fei, Liu Bei e Guan Yu. (Imagem: Koei Wiki Fandom/Reprodução)

Durante a ação dos “Turbantes Amarelos”, o imperador envia éditos para várias regiões implorando pela formação de exércitos voluntários populares para ajudar no combate aos rebeldes. É nesse momento que se formará uma fraternidade que moverá toda a história chinesa. Liu Bei, Guan Yu e Zhang Fei encontram-se e percebem-se possuidores do mesmo profundo ideal de resgatar a pureza do Han, e essa identidade fará com que eles façam um juramento de irmandade, jurando liderar um exército para combater os rebeldes e a corrupção. Esse é o famoso juramento que acontece no “Jardim do Pêssego”, onde os três irmãos jurados afirmam: “Não nascemos no mesmo dia, mas morreremos no mesmo dia”. Esse profundo juramento será mantido até o final do livro.

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Uma ilustração da dinastia Qing de Lü Bu. (Imagem: Wikipédia)

Mas o livro não retrata apenas histórias de lealdade, retrata também histórias de traição. Após a derrota dos rebeldes amarelos, quem se torna o general superior, com poder de inclusive controlar o imperador, é Dong Zhuo, um homem profundamente preocupado com poder. Esse Dong Zhuo decide realizar uma série de alterações no atual governo, ampliando cada vez mais seu poder, mas é enfrentado por um fiel general, pai de Lu Bu. Dong Zhuo é orientado por um de seus conselheiros a conquistar o apoio de Lu Bu, pois esse conselheiro afirma ter conhecido Lu Bu na adolescência e conhece o seu ponto fraco: luxúria. Dong Zhuo então envia esse conselheiro com ouro e um cavalo místico, “Crina Vermelha”, como presentes a Lu Bu. Lu Bu, encantado com a presença do cavalo mais belo e ágil do mundo, permite que seu coração se enfraqueça e aceita matar seu próprio pai adotivo. Após o crime, ele vai imediatamente até Dong Zhuo e lhe pede que o aceite como filho (não há necessidade de ressaltar a ironia). Como é mutável o coração humano!

Como é arrasador o poder! Dong Zhuo para fugir das coalizões que buscavam assassiná-lo chegou a mover a capital da China para uma outra cidade, e destruiu toda a antiga capital, sem o menor respeito pela tradição, pelos ancestrais que a construíram; chegou a assaltar até os seus túmulos.

O desespero pelo poder pode corromper a todos. Todos sentem que se estivessem no poder não se corromperiam, mas a força do poder pode dominar o coração. Assim aconteceu com Yuan Shu que, enquanto coalizões eram formadas para combater Dong Zhuo, achou o selo imperial, famoso artefato que era transmitido de imperador a imperador, e que garantia a autoridade do poder imperial. Assim, Yuan Shu, se colocava como o novo imperador por ordem divina. Mas foi assassinado.

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Esse selo chinês apresenta nove dragões que significam masculinidade e a autoridade imperial. (Imagem: BBC/Reprodução)

As mulheres no livro também desempenham papéis extraordinários. O exemplo mais marcante é o de Diao Chan. O pai de Diao Chan, Wang Yun, era um governador do império, agora portanto funcionário de Dong Zhuo, mas um homem muito honesto e respeitável. Ele decide criar um esquema que possa destruir Dong Zhuo. Certo dia caminhando à noite nos jardins da sede de seu governo, observando a lua e meditando alguma possibilidade de ação, ele encontra sua filha Diao Chan aos prantos. Ela diz lhe ser muito grata por ele a ter recebido como filha, quando foi abandonada quando criança. Diao Chan diz sofrer profundamente por não conseguir ajudar o pai nesse momento de desastre no império, mas diz haver uma possibilidade, ela daria sua própria vida para ajudar o império. Imediatamente Wang Yun entende o plano: ele prometeria sua filha ao mesmo tempo a Lu Bu e a Dong Zhuo. E assim foi, o poder feminino gerou o atrito entre Lu Bu e Dong Zhuo, pai e filho, e mais uma vez Lu Bu assassina seu próprio pai. Lu Bu a partir de então ficou conhecido como o “homem de três pais”.

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Diao Chan é supostamente uma das quatro antigas belezas chinesas. 
Apesar de sua ausência nos registros históricos, ela foi imortalizada como uma heroína pelos famosos clássicos da literatura chinesa 
Romance dos Três Reinos. (Imagem: Reprodução)

Apesar de toda a corrupção e luta pelo poder, os grandes generais mantinham um nível de respeito e caráter elevados que não encontramos em nossa época. Um exemplo disso é quando os irmãos jurados se separaram devido à guerra, e Cao Cao manteve Guan Yu preso. Cao Cao fez de tudo para que Guan Yu virasse seu aliado, deu-lhe presentes, inclusive o Crina Vermelha, mas em nenhum momento Guan Yu esqueceu de seus irmãos jurados. E Cao Cao respeitava profundamente este sentimento. Até que Guan Yu, após derrotar um general em favor de Cao Cao, exige como recompensa que ele possa ir embora ao encontro de seus irmãos, e assim Cao Cao o permite.


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2 thoughts on “O Romance dos Três Reinos – Parte 2 – Educação e Imitação

  1. Gostei muito da sua explanação sobre o romance dos três reinos, você irá continuar a escrever sobre a obra? Ansioso pela continuação. Parabéns pela iniciativa.

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