Marra Signoreli: um poeta do “underground estético”

Adalberto De Queiroz

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            (A iluminação das dançarinas de Leucoteia)

Tomemos o título para compreender que Signoreli conhece o enredo que está musicando. Falamos do canto V, da Odisseia, de Homero, por sinal texto de uma das epígrafes do livro: “Leucoteia, afamada pelos pés sedutores […] recebia agora honras de deusa marinha.” – transcrito pelo autor conforme à tradução feita por Donaldo Schüller.

Ora, sabemos através do poeta inglês Robert Graves[i], que

“Ino era Leucoteia, a Deusa Branca, e provou sua identificação com a deusa tripla fazendo uma orgia no monte Parnaso. Seu nome (“a que dá vigor”) sugere orgias itifálicas e o crescimento vigoroso dos cereais. Meninos devem ser-lhe sacrificados de forma sangrenta antes de cada semeadura invernal. Ao mesmo Zeus atribui-se a deificação de Ino como demonstração de gratidão pela sua amabilidade para com Dionísio, e Atamante tem um nome agrícola em sua homenagem.”

Marra Signoreli: um poeta do
Marra Signorei é poeta e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás.

Leucoteia está ligada ao nome de Atamante e relacionado ao mito com Atamânia, cidade da Tessália. São histórias arcaicas que vez por outra voltam a inspirar os poetas e os mitólogos, ou ambos, como no caso de Graves. Deusa-mãe dos centauros, (Ino) Leucoteia – a que aparece no Canto V da Odisseia, reaparece no livro do jovem poeta Marra Signoreli. Ele prova estar de acordo com o aforismo de Graves, segundo o qual “a primeira riqueza do poeta é o conhecimento e o entendimento dos mitos”.

Na mais famosa dessas histórias poéticas está Ino (Leucoteia) ligada mesmo a “Odisseu, cujo nome significa “zangado”, e representa o rei sagrado de pele avermelhada, que em latim recebe o nome de Ulisses (ou Ulixes) – palavra provavelmente formada a partir de oulos, “ferida”, e ischea, “coxa” – referindo-se à ferida causada pela presa de um javali, que sua velha ama reconheceu quando ele voltou para Ítaca…Odisseu de algum modo havia sobrevivido à ferida” – garante Graves.

O jovem poeta goiano, como os centauros, ele próprio filho de uma terra agrária, parece admitir a hegemonia da Deusa Branca, de que nos fala Graves, logo no início do livro, mas diverge (ou pelo menos lança dúvida) quanto à centralidade religiosa que o poeta inglês deu a ela em “A deusa branca: uma gramática histórica do mito poético”, conforme vemos no poema Prelúdio:

Ó serena Leucoteia,
vi teu cetro e teu escudo,
e o brasão d´ave sombria
mais o espelho que o rodeia

pra eficácia da magia:
quem nele se forma, em tudo
se rende às normas do cetro;
perde o juízo, se fia

em qualquer distinto metro
de seu próprio, mas a ideia
da fuga é ouvir o que voa
e achá-lo, íntimo e certo,

como a corda, que ressoa.
Ó Serena Leucoteia,
vi teu cetro e teu escudo,
e onde está tua coroa?

Uma paráfrase me atrai muito ao ler e reler este poema: “aos 66 anos, ainda me diverte o paradoxo de a poesia sobreviver obstinada na atual fase da civilização” – se você diminuir um ano na idade do narrador, estará diante do texto original de Robert Graves (1895-1985) no seu consagrado e polêmico “A deusa branca” (2003). O entrecho é este:

“Embora reconhecida como profissão erudita, [a poesia] é a única para cujo estudo as academias não estão abertas e para a qual não existe um padrão de medida, ainda que tosco, com o qual se possa avaliar a perícia técnica. “Os poetas nascem, não são feitos”. A dedução esperada disto revela que a natureza da poesia é demasiadamente misteriosa para suportar um exame. Com efeito, é um mistério ainda maior do que a realeza, pois reis tanto são feitos quanto nascem e as falas citadas de um rei morto pouco pesam, quer no púlpito, quer na opinião pública.”

A síntese desse raciocínio sofisticado de Graves leva o leitor experiente a concluir que “a verdade é que só o minério de ouro pode ser transformado em ouro; apenas a poesia torna-se poema”. Isso se aplica inteiramente a (João Antônio) Marra Signoreli neste livro que tenho sobre a mesa e que tanto me desafia como leitor e poeta menor – não considerando aí nenhum dote crítico.


LEIA TAMBÉM: [Wladimir Saldanha] Um Facho De Luz Em Meio à Névoa (recortelirico.com.br)

A propósito, lembro-me muito bem quando escrevo sobre poetas (e livros de poesia) daquela magistral advertência de George Steiner: “O crítico vive de segunda mão. Ele escreve sobre. O poema, o romance ou a peça têm de ser dados a ele; a crítica existe pela graça do gênio de outros homens. Em virtude do estilo, a própria crítica pode tornar-se literatura”, mas “não é a crítica que faz a linguagem viver”.

Tal não é o caso da crítica desenvolvida por Wladimir Saldanha, que é também poeta (e dos bons), que fez o prefácio (intitulado “Se não se morre de amor”) deste livro de Signoreli e transcrito em “Modos de romper a névoa[ii]” (2020):

Seria possível demorar-me em páginas sobre os sutis jogos formais de Marra Signoreli, jogos que talvez não sejam perceptíveis facilmente. Há coroa de sonetos, personagens líricas – Dado e rara, por exemplo – e grande brilho na escolha lexical, até mesmo em versos simples, como “e agora acaricia as cores” ou “acaba de buscá-la na ambulância”. Estes dois são exemplos de uma imagem desenhada que, pela coloquialidade, deixa ver um dos caminhos possíveis da poesia posterior do autor, caminho também temático, o da vivência púbere e adolescente modulada em música sofisticada, só aparentemente simples. Tal poema, assim como os quatro avulsos recolhidos em um Apêndice – destaque para “À rosácea de Notre-Dame” [vide transcrição abaixo] – dizem muito de uma poesia já bastante consciente e ainda por ampliar-se.


“Em apresentações e prefácios, costumo não me demitir da posição crítica de resenhas e ensaios, mas aqui fiz questão de escrever em primeira pessoa e polvilhar o texto de informações que só a convivência pode fornecer. Isto porque acompanhei pessoalmente, por anos a fio, a refundição deste livro, desde que João Antônio me enviou o primeiro original, e nele reconheci a força de um poeta legítimo, alguém devotado à poesia como sua razão de ser. Leucoteia foi embelezada, engavetada, esquecida, aumentada, diminuída, finalmente lembrada, depurada, ajustada. Aqui está para os leitores, e eu me despeço dela, como Signorelli já terá se despedido. Dance livre, minha querida. Ensine-nos de novo a morrer de amor.”

Marra Signoreli: um poeta do
Capa do segundo livro de Marra Signoreli, lançado em 2020

No primeiro paratexto do livro (a orelha), o poeta baiano João Filho comenta que, na sua forma integral o livro pode ser visto como uma espécie de coreografia poeticamente estruturada, que tem uma musicalidade mágica – e esse adjetivo “mágico”, garante João não é casual porque a cadência lograda por Signoreli de verso a verso, poema a poema – é encantatória.

De fato, o livro é de uma musicalidade incrível. Afinal, o poeta é também músico e neste livro dessa espécie de balé simbólico vão se transfigurando, vão passando pela nossa frente musas nomeadas: Leucoteia, Lúcia, Rara, Mariana, Bárbara, Amanda, Helena, Cibele, Luísa…como se a deusa-branca, Leucoteia, se fundisse nas figuras humanas dessas mulheres e o poeta tome consciência da figura da Musa.

Marra Signoreli é um desses jovens poetas surgidos daquele movimento que Wladimir Saldanha chama de “underground estético”; isto é, poetas que saíram do subterrâneo da produção, em que domina o multiculturalismo, para produzir algo novo, interessante e que nos dá um enorme prazer de leitura.

Em vários sonetos, Marra Signoreli não apenas demonstra o domínio da forma como da musicalidade e gera prazer estético de alto nível, de forma a lançar o leitor para um espaço-tempo que vaga além do mero domínio formal. Wladimir já dissera que o poeta Signoreli está “buscando, sempre, algo além da mesma forma – aquilo que ela, ora por insuficiência, ora por crueldade, nunca lhe franqueia”. Releio este Soneto (p.23):

A vida é simples. Simples é o mistério.
Você não pense que eu lhe disse “juras
de amor”, como se tintas tão impuras
pudessem assinar contrato sério.

Bem sei que em meio a tantas amarguras
você tampouco segue o seu critério
(o complicado exerce seu império
no coração ansioso por rupturas).

E a vida é básica é elementar
a tábua em que Órion caça para sempre.
Olhemo-na, que é linda e legível

até que, enfim, ao coração adentre
não sei que luz de antigo iluminar
e o amor se torne menos impossível.

E mais não digo, esperando que o leitor vá por si mesmo à busca das diversas vozes que modulam os movimentos de “As dançarinas de Leucoteia”, que descubra per si a musicalidade do jovem poeta goiano de quem, certamente, os futuros leitores dirão ter identificado uma voz única, o canto exato e musical de um verdadeiro cultor da poesia neste século XXI.

 À rosácea de Notre-Dame[iii]

Considere que a rosa permanece.
A espiga queima ao prato da balança,
é uma candeia que jamais perece.

Dissolveu-se no orvalho a nossa prece,
e de muito cantar a voz se cansa;
considere que a rosa permanece

e fere as chamas, como se estivesse
desabrochando na desesperança,
é uma candeia que jamais perece

mesmo se, rosa, da roseira a viesse
colher, a jovem, para pôr na trança:
considere que a rosa permanece.

Também sou cinza e a cinza me arrefece;
a lágrima combusta na tardança
é uma candeia que jamais perece,

que ora ilumina a lúcida quermesse
silenciosa na noite à qual se lança.
Considere que a rosa permanece
– é uma candeia que jamais perece.


SOBRE O AUTOR:

João Antônio Marra Signoreli nasceu em Goiânia, em 1989. É poeta, redator e professor de literatura. Compõe música amadoramente. Publicou o livro Klívena Klarim (Editora Kelps, 2011). Contribuiu para as revistas Diversos Afins (69º leva, 2012), Mallarmargens (Poemas Vol.1. N.2, 2012), Nichtsalsschoenheit (#3 Flucht ins Paradies, 2016) e Perseus (Vol.1. N.1, 2018). Também contribuiu para a antologia Poesia brasileira em contracorrente: o retorno estético do século XXI (Mondrongo, 2019, Bilingue: Port/Fran). Teve sua poesia musicada por Alex Nante nas composições Romántica (estreia em Buenos Aires, 2014) e Canto da perda (estreia em Paris, 2015). Também musicou seus próprios poemas nas canções Madrigais Misteriosos, estreadas no festival Goiânia Música Hoje em 2015. Essa peça, ao lado de duas miniaturas para piano foram estreadas em Buenos Aires, em 2014, e pode ser escutada em seu Soundclound (soundclound.com/marrasignoreli).


[i]GRAVES, Robert. “Os mitos gregos”, vol. 1, trad. Fernando Klabin, 2ª. ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, item 70 4., pág. 350.

[ii] SALDANHA, Wladimir. “Modos de romper a névoa: crítica de poesia brasileira contemporânea e temas afins”. Itabuna (BA): Mondrongo, 2020. Ver p.86-93.

[iii] SIGNORELI, Marra. “As dançarinas de Leucoteia”. Itabuna, BA: Mondrongo, 2020, p. 117. Deste poema, o autor destaca em epígrafe que foi feito em ocasião do incêndio na Catedral de Notre-Dame de Paris, em 15/IV/2019.


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