Ilustres desconhecidos da poesia: Bernardo Souto
Nesta coluna, homenagearemos o poeta e ensaísta pernambucano Bernardo Souto por meio de uma seleção de sete poemas publicados em seu último livro, A Aridez das Horas (Editora ViV, 2020), que recebeu, neste ano, o Prêmio de Poesia da APL (PE). Embora nosso objetivo seja o de dar visibilidade a poetas ilustres, mas “esquecidos”, pode-se dizer que Bernardo Souto é mais ilustre do que desconhecido; trata-se, sem dúvida, de um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos e certamente sua poesia é bem lida e apreciada.
Bernardo Souto é bacharel em Letras/Crítica Literária pela Universidade Federal de Pernambuco, onde teve aula com a grande Lucila Nogueira, escritora homenageada nesta edição (da revista Recorte Lírico, da qual o texto foi extraído). É mestre em Literatura e Cultura: Estudos Comparados pela Universidade Federal da Paraíba. Ademais, é autor de três outros livros de poesia: Elogio do silêncio (Edições Bagaço, 2010), Teatro de Sombras (Selo Editorial Moinhos de Vento 2011) e O corvo e o colibri (Editora Mondrongo, 2015). Por fim, além da seleção de poemas, esta coluna contará com um ensaio exclusivo de Bernardo sobre seu contato com Lucila Nogueira, quando foi aluno da poeta na época de graduação.
Contemplai!
Sobre o Canto – 1
“We are such stuff! As dreams are made on”
(Shakespeare)
Que meu canto seja estranho –
Feito da mesma matéria
De que são feitos os sonhos.Que não seja um cantar oco –
Seja ardente como o sangue
E violento como um soco.Que seja um canto febril –
Tal como um touro atingido
Por um tiro de fuzil.
As coisas que abracei ardentemente,
As coisas que abracei, perdi-as todas…
À maneira do pássaro que pousa
À sombra da alameda inexistente.Perdi o bem passado e o bem presente:
O sopro divinal que anima as cousas
Extinguiu-se tal qual a mariposa
Que voa rumo ao bosque incandescente.Tornei-me um andarilho do deserto,
Sem lar nem norte, que não sabe ao certo
Onde acaba o mal e começa o bem.Por ora, vou cumprindo o meu destino –
Até que toque o derradeiro sino
E Deus Pai me conduza para o Além
A aridez das Horas
O pôr-do-sol sertanejo
Me aniquila e me apavora.
Uma espécie de orfandade
Inunda toda a minh’alma
Quando a tarde vai embora.
Tão somente no Sertão
Eu sinto profundamente
O peso desconcertante
Dessa aridez que há nas horas.
As palavras e as Brasas
Palavras valem muito pouco
Para quem despreza o Silêncio.
Por isso o verso é natimorto
Quando não traz em si, por dentro,
A ferocidade do fogo
Incontrolável dos incêndios.
Murilo Mendes
O Sol arde em sangue;
Corcéis rubros relincham
À margem direita do abismo.
O mar em fúria devora
A terça parte da Terra.
A Lua se desprende do céu,
Esmaga o Himalaia
E faz rolar a cabeça
Da grande esfinge do Egito.
No firmamento, uma falange de anjos,
Ao som de trombetas de fogo,
Anuncia o fim do mundo.
Os inimigos dos Poetas
Homicidas do mistério
Sempre escarram no sagrado.
Como os porcos, só desejam
O lixo e a lama dos charcos.
Homicidas do mistério
Nutrem ódio às coisas do Alto
(Sobretudo ao Bem e ao Belo),
À feição dos fracassados.
Homicidas do mistério
Já se sabem condenados;
E seus olhos têm a cor
Pálida dos afogados.
Como é possível arrancar de nós
A palavra sem alma e nebulosa?
Palavra semimorta, qual a rosa
Sem leveza, sem perfume e sem voz.
Como é possível arrancar de nós
Essa sede infinita de dizer?
Como então será possível conter
Esse oceano de silêncio atroz?
Toda palavra é frágil e inexata,
Mas a morte do verbo é o que nos mata:
Dizer é como ouvir a voz divina.
Entretanto, quando a vida ruir,
Poderemos então, enfim, ouvir
A Palavra perfeita e cristalina.
*Poesias de Bernardo Souto disponibilizadas pelo próprio autor para publicação livre.
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Bernardo Souto sobre Lucila Nogueira (homenageada da Revista Recorte Lírico)
A grande poeta Lucila Nogueira chegou a ser minha professora de Literatura Portuguesa, na UFPE, nos idos de 2003. Era uma figura que chamava a atenção pela vitalidade intensa, pela personalidade marcante e pelo feroz bom humor. Lembro-me vivamente de um diálogo que ela teve com um colega meu do curso de Letras. Foi mais ou menos assim:
— Professora, me desculpe. Mas não tive dinheiro pra comprar o livro. Não vai dar pra apresentar o seminário…
Ao que ela, sagaz como sempre, respondeu:
— Ah, é?! Não teve dinheiro pra comprar um livro de trinta reais, mas deu trezentos paus nesse tênis feio e bizarro, não foi?!
Lucila era assim. Gostava de quem gostava de Literatura. Era uma poeta de alma e ofício.
Quando andava pelos corredores da Federal, sempre com vestidos multicoloridos e com passos cadenciados, fazia a alegria de quem estava por perto. Havia nela qualquer coisa como uma luminosidade, que era acentuada pelo seu aspecto excêntrico de feiticeira do bem.
A morte precoce de Lucila, em 2016, causou grande comoção. Até mesmo quem não gostava dela sentiu o golpe. Desaparecia do Recife uma figura muito autêntica e carismática, mas que nos deixou como legado uma obra poética que, pela grande qualidade, jamais há de desaparecer.
Esta coluna sobre o poeta Bernardo Souto, da Redação Recorte Lírico, foi publicado originalmente na Edição Lucila Nogueira, da Revista Recorte Lírico.
Bernardo Valois Souto, (Recife, 17 de setembro de 1982), é um poeta, crítico literário, professor de literatura e tradutor brasileiro.
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