O “Terceiro Reino” de F. R.Leavis

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No mundo da cultura literária, às vezes o Destino nos premia com aquelas figuras singulares que surgem como farol do farol, ou luz da luz: os críticos literários. Esses homens, um misto de filósofo e poeta, lógico e artesão, vêm assumir o fardo de Marte em penetrar nas obras literárias, romper sua tessitura poética, não para destruí-las, mas para retirar dali mais luz, mais compreensão.

Dentre esses faróis singulares, temos a figura do desconhecido, mas jamais obscurecido, F. R. Leavis, o notório crítico literário do Reino Unido; talvez por seu estilo “denso” e por falta de interesse dos brasileiros, sua obra foi pouco traduzida para nosso idioma. Leavis combateu a massificação no campo intelectual e defendeu a importância do aprendizado literário como fonte da inteligência, que apoiada no conhecimento da língua e da tradição literária pode então se especializar e desviar para algum campo de estudo, desde a poesia até à matemática. Tipo colérico, rechaçou e humilhou o advogado das “Duas Culturas”, C. P. Snow, e tão contundente foi seu rugido contra o pobre sujeito, que a Academia se sacolejou entre vaias e aplausos, e Snow tremendo sobre os sapatos, com o perdão do trocadilho, ficou pálido como a neve.

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É deveras fundamental a leitura de seu livro “The Living Principle”, principalmente quando o crítico investiga o modo de existência de um poema ou da arte poética em geral, tal como naquela famosa pergunta: Onde Hamlet existe, onde ele paira quando a cortina se fecha ante o ator que se pavoneia? Fazendo defesa da intuição e da ideia do poeta como um mediador, como o emissário do invisível, cita a bela frase de Blake, na qual resume a atividade misteriosa do poeta, aquele que fala não por meio de sugestões do ego, mas do eu mais interior:

“Um artista talentoso, um escritor genuinamente criativo, tem de aprender a ser espontâneo […] Blake estava enfatizando sua espontaneidade quando, referindo-se aos seus próprios trabalhos, disse: ‘Embora eu os chame de Meus, sei que eles não são Meus’. ‘A faculdade intuitiva viva’ capta estímulos que, para aqueles que os têm, ‘não são deles’ — não são sugestões ‘da vontade, do ego e da ideia’”.¹

O “Terceiro Reino” de F. R.Leavis 1

Leavis defende que a análise literária é um processo de justificação da ideia de que um poema tem alguma existência pública, ou real, de modo que se apresenta para os homens. Como uma árvore que dois amigos percebem. Por meio de sua presença ante às consciências, é possível então um diálogo, do mesmo modo que esses dois amigos buscam entender a espécie dessa árvore numa discussão sobre o formato de suas folhas. Porém há uma diferença do poema para a árvore, pois a presença do primeiro não é física, não podemos ao andar distraídos tropeçar em um poema no meio do caminho, mas por meio do diálogo de consciências vamos aprimorando nossa percepção subjetiva do poema e, como numa assíntota, vamos nos aproximando do seu ideal “concreto”. O poema, portanto, não é nem subjetivo, pois tem uma presença pública, nem objetivo, no sentido de que possa ser quantificado, mas todos sabemos ser ele real; sua existência, portanto, na terminologia de Leavis, pertence ao “Terceiro Reino”.

“Análise, então, é o processo de justificar a afirmação que um poema, que entendemos ser real, apresenta-se entre nós naquilo que podemos chamar de um mundo público. […] Ele não é nem simplesmente privado, nem público no sentido de que possa ser levado a um laboratório, quantificado, esbarrado ou mesmo apontado […] O poema é um produto, e, em qualquer existência real experiente, um fenômeno da criatividade humana […] E ainda assim é real. Para usar uma formulação que lancei anos atrás no curso de definir a natureza da disciplina que estou preocupado em justificar, ele pertence ao ‘Terceiro Reino’ — o reino daquilo que não é nem público no sentido comum nem meramente privado”.

Tendo como fundamento as obras, também caídas no olvido, de Marjorie Greene e Michael Polanyi, vem protestar (termo tão reduzido ultimamente à esfera política) contra os abismos da filosofia moderna inaugurada por Descartes, sublinhando uma das teses centrais da obra de Polanyi de que todo conhecimento objetivo está sustentado numa rede tácita de outros conhecimentos, e retirando-se esta o conhecimento se esvai:

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“O ideal de um conhecimento estritamente explícito é de fato autocontraditório; desprovido de seus coeficientes tácitos, toda palavra dita, toda fórmula, todo mapa e gráfico são estritamente sem sentido. Uma teoria matemática exata nada significa a menos que reconheçamos um conhecimento não-matemático e inexato sobre o qual ela se apoia e uma pessoa cujo juízo a defende”.

O “Terceiro Reino” de F. R.Leavis
F. R. Leavis; desenho de David Levine

Assim, a tese de Leavis, hoje, nos remete mesmo à semiologia de John Deely, com o mundo das relações semióticas/simbólicas que medeiam a relação entre o conhecedor e o conhecido, já que o signo é aquilo que todo objeto pressupõe. Livrando-nos do antolho cartesiano, fazendo-nos descobrir o verdadeiro mundo da existência humana, não-limitado ao “bifurcacionismo”, pois o mundo das relações é invisível.

“Um poema está ‘lá’, um significado está ‘lá’, mas não em um espaço; o ‘lá’ é um modo de dizer que, embora não no espaço, é ‘concreto’ […] A antítese, ‘público’ no sentido comum e simplesmente ‘privado’, não é abrangente. […] Eu criei a frase ‘Terceiro Reino’ para designar a ordem do ser à qual o poema pertence. Um poema não existe separado de seu significado, e os significados pertencem ao ‘terceiro reino’”.

Mas a afirmação do modo da existência de um poema ou de uma obra poética é uma indicação do modo da própria existência do Mundo Humano. Não temos contato direto com a natureza, ou mundo “corpóreo”, pois entre nós e a natureza há a mediação de um mundo cultural, de um mundo semiótico. E só podemos manifestar plenamente nosso potencial humano pela mediação desse mundo humano, cultural, que existe nesse terceiro reino, ou na terceira margem do rio, ou em um “mundus imaginalis” — termo concebido por Henry Corbin, que indo mais além de Leavis, apresenta esse terceiro reino numa dimensão ontológica.

“[O] relato do modo de existência de um poema é uma indicação prenhe do modo no qual o Mundo Humano é criado e, em renovação constante, mantido. É em direção ao Mundo Humano que, no esboço dado por Marjorie Greene sobre a realização de um ser humano de sua humanidade plena, a criança nasce — o mundo que ela cada vez mais vive completamente; e Greene deixa claro que viver é tanto recriação quanto criação”.

A existência humana é, portanto, também intermediária, é esse mundo intermediário que é o palco de nossa consciência, é nele que dialogamos e agimos. É também nele que ocorrem certos fenômenos misteriosos. É também o mundo da tradição — o conjunto, explícito ou tácito, de formas, linguagens, sentimentos, mitos que herdamos. De modo que a criação de uma obra poética é como que dual, o poeta individualizado dá uma resposta para sua situação concreta, mas a qualidade da resposta depende da qualidade de sua absorção das formas da tradição. Mas a resposta mantém-se original e não uma cópia morta; como se a mão do poeta ao pegar da pena fosse as formas consolidadas, e a direção do movimento da escrita fosse sua resposta original.

Seja este pequeno texto de inspiração para que se retome a obra de Leavis, pois nesse “Terceiro Reino” intuímos (ahnung) algo ainda mais profundo…

[Citando Collingwood] “De qualquer modo isto parece claro: já que a ciência moderna está comprometida com uma visão do universo físico como finito, certamente no espaço e provavelmente no tempo, a atividade que esta mesma ciência identifica com a matéria não pode ser autocriada ou em última instância auto dependente. O mundo da natureza ou mundo físico como um todo, qualquer seja o modo de olhá-lo, deve derradeiramente depender para sua existência de algo além de si mesmo”.

¹Todas as citações são do livro The Living Principle, de F. R. Leavis. Elephant Paperback, 1998; e todas são traduções livres do autor deste ensaio.

Este ensaio (O “Terceiro Reino” de F. R.Leavis) do William Passarini foi publicado primeiro na Revista Recorte Lírico, na Edição Lucila Nogueira.

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