A CAVERNA, DE JOSÉ SARAMAGO:ENTRE O MITO DE PLATÃO E A TECNOLOGIA DIGITAL

A CAVERNA, DE JOSÉ SARAMAGO:ENTRE O MITO DE PLATÃO E A TECNOLOGIA DIGITAL

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Verônica Daniel Kobs

Neste estudo, escolhi analisar A caverna, de José Saramago, relacionando-a ao livro Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, de Italo Calvino. Conheci o livro A caverna no ano do lançamento, quando o autor veio ao Brasil, divulgando seu trabalho mais recente. Em Curitiba, o evento foi realizado em dezembro de 2000, no Centro de Convenções. Além da fala do próprio escritor sobre o romance, houve uma leitura feita pelo ator Luís Melo. No trecho lido, Cipriano Algor questionava-se sobre o valor de seu ofício, diante da modernidade representada pelo Centro. Naquela época, em terras brasileiras, a tecnologia digital ainda era incipiente, de modo que não a associei à narrativa, depois que li o livro. Naquele primeiro contato, tratei das questões do consumo e da alienação. Ao longo do tempo, li e aprendi sobre as identidades e sobre as mídias, o que me permitiu acumular informações que resgatei agora, quando decidi revisitar A caverna, para aprofundar as reflexões sobre os efeitos da tecnologia digital na sociedade contemporânea.. 

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Depois de escolhida a obra, era preciso definir os participantes do diálogo, para que houvesse outros interlocutores, além de Sócrates, Glauco, Platão e Saramago… Então, optei por combinar o tema do consumo, que já tinha esboçado, à questão do advento tecnológico digital. Considerando que isso nos caracteriza hoje, o primeiro nome que me veio à mente foi o de Italo Calvino. Estava estabelecido o eixo comparativo do meu estudo: as propostas de Calvino, de teor ensaístico; e a proposta de Saramago, de caráter romanesco.

Pude reparar, então, no fato de que, por associação às propostas de Italo Calvino, A caverna, de José Saramago, pode ser considerada uma lição portuguesa, configurando-se como uma proposta para o novo milênio. Como o romance foi publicado em 2000, acredito que o autor, a partir dos conflitos experimentados pelo protagonista Cipriano Algor, tentou apresentar ao mundo uma hipótese do que nós, humanos, poderíamos nos tornar, levando em conta as alterações que já podiam ser percebidas, tanto na tecnologia quanto nos modos de consumo.

Nem sempre percebemos com clareza as mudanças provocadas pelos avanços tecnológicos, sobretudo hoje em dia, quando novidades nessa área são ainda mais frequentes. No entanto, para Fátima Régis, “novas tecnologias permitem novos modos de experiência, fazendo repensar o próprio conceito de humano” (Régis, 2012, p. 184).

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Figura 1: Exemplo da revolução digital protagonizada pela IA, na sociedade do século XXI. Imagem disponível em: https://br.freepik.com/imagem-ia-premium/robo-feminino-completo-ia-robo-de-inteligencia-artificial-renderizado-em-3d_83702720.htm

Portanto, minha leitura propõe que, em A caverna, associando o presente ao futuro e também ao passado, o escritor revisita o mito de Platão e, a partir dessa metáfora, podemos perceber indícios do isolamento e da inércia que representam, hoje, nossa sociedade.

No final do romance, Cipriano Algor protagoniza a cena que revisita o mito da Antiguidade Clássica, como mostra esta passagem: “Surgiu-lhe, num instante, o que parecia um banco de pedra, e logo, […] cinco corpos igualmente sentados, erectos todos como se um espigão de ferro lhes tivesse entrado pelo crânio e os mantivesse atarraxados à pedra” (Saramago, 2000, p. 332). Algumas páginas depois, o personagem conclui: “Essas pessoas somos nós, […] eu, tu […], o Centro todo, provavelmente o mundo […]” (Saramago, 2000, p. 334-335).

No “Livro VII” de A República, de Platão, Sócrates e Glauco discutem sobre a luz, relacionada ao mundo real, e as sombras, que se referem à escuridão da caverna e às cópias imperfeitas da realidade. Em dado momento, Sócrates, mencionando aquele que conseguiu sair da caverna, diz a Glauco: “Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?” (Platão, 2007, p. 298). Isso pode ser associado a este fragmento de A caverna: “[…] a partir de hoje tudo seria pouco mais que aparência, ilusão, ausência de sentido, interrogações sem resposta” (Saramago, 2000, p. 242).

Se considerarmos o Centro mencionado na obra de Saramago como algo próximo aos shopping centers, ainda que guardando as devidas diferenças, podemos afirmar que a aparência refere-se tanto à finalidade do consumo quanto à posição geográfica dos shoppings, pequenos centros construídos em meio ao grande centro e que, conforme Zygmunt Bauman,  funcionam como um reduto, transformando “[a] extraterritorialidade da nova elite supralocal no isolamento corpóreo, material, em relação à localidade” (Bauman, 1999, p. 28). Nesse sentido, os centros de compras oferecem “pouca ou nenhuma relação com o ritmo e o teor da vida diária que flui ‘fora dos portões’” (Bauman, 2001, p. 115, grifo no original). Nos shoppings, não há relógios, o tempo passa devagar e os consumidores passam pelas lojas, em tom de procissão. Citando os versos de José Paulo Paes, em uma de suas Odes mínimas: “Pelos teus círculos / vagamos sem rumo / nós almas penadas / do mundo do consumo” (Paes, 2001, p. 73).

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Figura 2: Dos shopping centers aos sites de compras. Imagem disponível em: https://www.educabras.com/aula/a-tecnologia-a-midia-e-mudancas-sociais

A metáfora das “almas penadas” é salutar, porque desmascara o consumo, que quase sempre é ingenuamente percebido como liberdade de escolha. Bauman refere-se a esse estratagema nesta passagem:

[…] a cada visita a um ponto de compra os consumidores encontram todas as razões para se sentir como se estivessem […] no comando. Eles são os juízes, os críticos e os que escolhem. Eles podem, afinal, recusar fidelidade a qualquer das infinitas opções em exposição. Exceto à opção de escolher entre uma delas, isto é, essa opção que não parece ser opção. (Bauman, 1999, p. 92)

Em A caverna, a ideologia do Centro resulta em aparência e desconexão com a realidade, como podemos notar neste trecho: “[…] experimente sensações naturais, chuva, vento, e neve […] uma pirâmide do egipto, um templo de Karnak, […] um himalaia com seu evereste, um rio amazonas com índios, […] enfim uma lista a tal ponto extensa de prodígios que nem oito anos de vida ociosa bastaria para os desfrutar com proveito, mesmo tendo nascido a pessoa no Centro e não tendo saído dele nunca para o mundo exterior” (Saramago, 2000, p. 308). O Centro, então, recria a caverna de Platão, fazendo com que as pessoas passem a recusar o mundo real, contentando-se com cópias ou arremedos, que apenas simulam experiências e sensações.

Por vezes, a consequência disso pode ser uma espécie de vício que acaba legitimando o falso. Isso também ecoa em nossa realidade hoje, que há pouco tempo incorporou duas novas palavras ao dicionário: fake news e pós-verdade. Esta última inclusive foi eleita a palavra do ano em 2016, pela Universidade de Oxford (Fábio, 2017). No mito de Platão, o fenômeno que aqui relaciono à pós-verdade é comentado por Sócrates, quando ele e Glauco discorrem sobre os efeitos da luz para alguém recém-libertado da caverna: “E se a forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?” (Platão, 2007, p. 298).

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Figura 3: Sociedade informacional: os riscos da repercussão nas redes. Imagem disponível em: https://www.seesp.org.br/site/index.php/comunicacao/noticias/item/19628-pos-verdade-fake-news-democracia-e-tecnologia-que-fazer

Nesse ponto, consumo e tecnologia se entrelaçam, unificando posturas e comportamentos. De acordo com Marshall McLuhan: “Talvez […] a consequência […] mais evidente de uma tecnologia nova seja simplesmente a sua demanda. Ninguém quer um carro até que haja carros, e ninguém está interessado em TV até que existam programas de televisão” (McLuhan, 1969, p. 88, grifo no original). Do mesmo modo, em A caverna, lemos esta constatação: “Qualquer caminho que se tome vai dar ao Centro” (Saramago, 2000, p. 275). Em outras palavras, a demanda tecnológica impulsiona o consumo, resultando na homogeneização, que, em um primeiro estágio, despersonaliza. Citando Stuart Hall: “[…] as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional […]” (Hall, 2001, p. 75-76, grifo no original).

No entanto, passando, agora, ao segundo estágio do processo desencadeado pelo consumo e pelo avanço das tecnologias, no espaço entremuros − dos centros de compras ou da própria casa −, estimulam-se a individualidade e o isolamento. Desse modo, acentua-se o paradoxo da globalização, que, em vez de continuar conectando as pessoas, resulta na fragmentação, incentivando a disputa e revelando o que Bauman chama de “blefe da unidade comunal” (Bauman, 2001, p. 221).

Nesse processo paulatino de isolamento, construímos muros (ou cavernas)… Considerando os muros reais, segundo levantamento publicado em 2017, na Folha de S. Paulo: “Das 17 barreiras físicas existentes em 2001, passamos para 70” (Maisonnave; Almeida, 2017). No entanto, com o advento tecnológico que conhecemos hoje, temos que falar também dos muros metafóricos, afinal as interfaces digitais anularam a necessidade do contato físico, alterando significativamente as relações interpessoais. Com apenas um clique, abstraímos a alteridade e toda a sociedade à nossa volta. O que sobra é nosso ego, ensimesmado. Sendo assim, não é demais afirmar que as telas de hoje são novos tipos de muros — transparentes quando queremos, mas intransponíveis.

De fato, esse é um risco que as pessoas assumem, quando permitem que a realidade virtual seja predominante, dia após dia. Para Lucia Santaella, a realidade virtual: “‘[…] é aparentemente verdadeira, […]’. Ser humano e máquina estão nela tão interligados que a natureza de cada um não é mais discernível” (Santaella, 2003, p. 305, grifo no original). Na obra A caverna, isso se concretiza na seguinte passagem:

[…] foram inventados os aquários virtuais, sem peixes que tenham cheiro de peixe nem água que seja preciso mudar. […] e, para que nem tudo tenham de ser obrigações, não só o fundo do aquário poderá ser decorado com vários tipos de rochas e de plantas, como o feliz possuidor desta maravilha terá ao seu dispor uma gama de sons que lhe permitirá, enquanto contempla os seus peixes sem tripas nem espinhas, rodearse de ambientes sonoros tão diversos como uma praia caribenha, uma selva tropical ou uma tormenta no mar. (Saramago, 2000, p. 233-234)

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Figura 4: Marcas da Era Digital: o fenômeno do cibridismo e o império da Realidade Virtual (RV). Imagem disponível em: https://anacecilia.digital/tempo-de-tela-no-celular/

Combinando perfeitamente com essa ironia e com a crítica à tecnologia, o livro A teoria do homem sentado, dos autores portugueses Pedro Barbosa e Abílio Cavalheiro, inicia-se com uma provocação endereçada ao leitor/internauta, que o narrador descreve como um homem sentado, “irremediavelmente embalsamado atrás do computador” (Barbosa; Cavalheiro, 1993). Quando acessamos a versão digital desse texto, temos a opção de definir o ritmo da digitação, assim como podemos pausar ou continuar, conforme desejarmos. Então, com apenas um clique, o texto se inscreve magicamente na tela em branco, na qual podemos ler as seguintes palavras:

Temido e odiado leitor:

Você é um homem permanentemente sentado diante do computador.

[…]

A poltrona adormece-lhe o traseiro.

[…].

Queira pois sentar-se, […]: isole-se bem das coisas reais […].

[…], ligue-se à internet, foque sobre si a câmara de vídeo caso queira entender até que ponto está morto. (Barbosa; Cavalheiro, 1993)

Quem aqui não se identificou com essa descrição? Inclusive você, que pode ter se isolado agora, por alguns instantes, quando verificou aquela mensagem que acabou de chegar pelo WhatsApp. Infelizmente (ou não!) isso é o que nos caracteriza. Afinal, todos gastamos a maior parte dos nossos dias sentados, olhando para diferentes telas… Tal como Cipriano Algor, somos “[…] como uma estátua de pedra sentada num banco de pedra olhando um muro […]” (Saramago, 2000, p. 308). Tal como Cipriano Algor, estamos protagonizando a mais nova versão do mito da caverna. Entretanto, podemos escolher: seremos aquele que apenas olha, de modo superficial e passivo, como se estivesse “embalsamado atrás do computador”; ou seremos como O pensador de Rodin, que e contempla o mundo à sua volta, reparando em tudo? 

            Caros leitores, sei que dei a vocês apenas duas opções e, com isso, não me afasto muito do aprisionamento instaurado pelo consumo… No entanto, meu objetivo não é propor uma armadilha retórica, nem tampouco fazer um discurso contra as novas tecnologias. Aliás, isso não cairia nada bem, já que uma das disciplinas que costumo ministrar é justamente Literatura e Tecnologia Digital. Neste ensaio, meu intento é convidá-los a refletir sobre as vezes em que a tecnologia assume o controle, afinal, éramos nós que deveríamos controlá-la… Sendo assim, minhas últimas provocações a vocês vêm nas palavras de um filósofo brasileiro e de nosso literato português. Segundo Paulo Freire:

Não sou apenas objeto da história, mas seu sujeito igualmente. No mundo da história, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar […]. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua […]. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. […]. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente de repente nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele.  (Freire, 2011, p. 75, grifo no original)

Portanto, talvez seja a hora de tentar seguir o valioso conselho − de José Saramago, e d’El-Rei D. Duarte: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (Saramago, 1995, n. p.).

REFERÊNCIAS

BARBOSA, P.; CAVALHEIRO, A. Teoria do homem sentado. 1993. Disponível em: <https://po-ex.net/taxonomia/materialidades/digitais/pedro-barbosa-teoria-do-homem-sentado-motor/>. Acesso em: 13 jan. 2019.

BAUMAN, Z. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

_____. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

FÁBIO, A. C. O que é ‘pós-verdade’, a palavra do ano segundo a Universidade de Oxford. 28 nov. 2017. Disponível em: <https://controversia.com.br/2017/11/28/o-que-e-pos-verdade-a-palavra-do-ano-segundo-a-universidade-de-oxford/>. Acesso em: 4 set. 2022.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.São Paulo: Paz e Terra, 2011.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2001.

MAISONNAVE, F.; ALMEIDA, L. de. Um mundo de muros. As barreiras que nos dividem. Folha de S. Paulo, 26 jun. 2017.

MCLUHAN, M. Os meios de comunicação com extensões do homem.  São Paulo: Cultrix, 1969.

PAES, J. P. Prosas seguidas de odes mínimas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PLATÃO. A República. Livro VII. 2. ed. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2007, p. 296-338. Disponível em:

<https://www.google.com/url?esrc=s&q=&rct=j&sa=U&url=http://www.eniopadilha.com.br/documentos/Platao_A_Republica.pdf&ved=2ahUKEwibkJCGlY35AhVhpZUCHVQmDG4QFnoECAgQAg&usg=AOvVaw1BE_gQPWcWAesViwFLK4k2>. Acesso em: 22 jul. 2022.

RÉGIS, F. Nós, ciborgues: tecnologias de informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Champagnat, 2012.

SANTAELLA, L. Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

_____. A caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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Trabalho desenvolvido para o Colóquio comemorativo dos 100 anos de José Saramago, promovido pelo Centro de Estudos Portugueses da UFPR, em setembro de 2022.

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