Lava a jato
Farrel Kautely
kauty.s@gmail.com
Ricardo estava em seu escritório. Seu celular comercial tocou.
— Lava a jato Latitude!
— Saudações! Nosso veículo está imundo. Gostaríamos de lavá-lo, mas achamos por bem saber se ele cabe em seu estabelecimento antes de irmos até aí.
A voz era estranhamente aguda. Parecia a Ricardo que a pessoa do outro lado da linha tinha respirado gás hélio para falar com ele. Isso só podia significar tratar-se de um trote.
Trotes nunca foram tão comuns depois do advento do celular. Antes, quando o comum era telefone fixo, eram bem mais corriqueiros. Ricardo viu a arte de trotear decair pouco a pouco até que as pessoas passaram a preferir mandar áudios a ligar.
— Provavelmente cabe — acabou respondendo. Se fosse trote, podia se divertir dando corda pro troteiro se enrolar — Temos uma cabine alta o suficiente para suportar o maior dos caminhões. Quais são as especificações do seu veículo?
— Você suporta uma circunferência de dez metros?
Ricardo riu. Circunferência? O sujeito de voz engraçada certamente só poderia estar esperando que respondesse que sim, então poderia falar algo como “Nossa, que arrombado!”
— Nossa maior cabine suporta veículos de quinze metros de altura — falou, fingindo-se de bobo. Se o troteiro fosse esperto, talvez conseguisse contornar isso e ainda fazer sua piada.
— Que ótimo! Então provavelmente nos caberá — o sujeito falou, no entanto. — Muito obrigado!
E desligou.
A princípio, Ricardo não soube o que pensar daquilo. Acabou dando de ombros, concluindo que a pessoa desistiu do trote.
Dali a pouco seu filho (e único funcionário de seu lava jato totalmente automatizado, cuja manutenção ele mesmo fazia) apareceu, afobado.
— Pai, vem ver a nave que acabei de deixar entrar na cabine três.
Ricardo riu do filho. O rapaz parecia espantado e admirado ao mesmo tempo. De tempos em tempos aparecia algum carrão que lhe causava admiração.
Disse ao filho que iria dali a pouco, mas o rapaz voltou a falar que era uma nave e que ele tinha que ir naquele instante, antes que acabasse de lavar e fosse embora.
Ricardo deu de ombros e colocou-se atrás do filho. O rapaz correu na frente e voltou para puxá-lo pelo pulso quando se recusou a correr também.
— Ai, Enzo, você está me machu…
Calou-se, espantado, quando passaram pela porta.
Enzo postou no Instagram a foto do disco voador planando a dois metros do chão sendo enxaguado com esguichos de água do maquinário do pai, pouco antes de sair e subir aos céus.
O primeiro comentário na foto foi “Até no paint eu faço uma montagem melhor do que essa aí”.