Charme e humor no ensaio

Adalberto De Queiroz

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Eis-nos, leitores, diante de um ensaísta de charme, para usar a expressão de Alexandre Soares Silva na apresentação deste “Saudades dos cigarros que nunca fumarei”.

Nele, Gustavo Nogy reabilita uma escrita que prova que “nem tudo precisa ser grave na vida”, dando razões para se rir e pensar a um só tempo. Tento nesta crônica provar que Nogy é digno do título de “ensaísta de charme”, que lhe atribuiu Alexandre Soares Silva na apresentação do livro.

É preciso que se defina bem a compreensão e caracterização feita pelo Alexandre. A minha predileção para a adaptação do francesismo é mesmo a ideia de encanto que algo ou alguém desperta, graça que seduz. Neste sentido, o leitor verá que esta ideia resta demonstrada, ao final da leitura.

Não me parece casual que aqui estejam unidos o romancista ao ensaísta, porque Alexandre e Gustavo fizeram sua estreia na escrita através de blogs – aquele no saudoso Wunderblogs, este no Oito Colunas.

Permita-me o leitor lembrar aqui os primórdios da internet, época em que pude ler textos do Nogy, na condição de seu colega no grupo Oito Colunas. Eram cortantes, mas generosos, lógicos e sempre bem-humorados.

São estas as preliminares – não podendo, pois, doravante aparecer para mim, surgido do nada, alguém que não seja este Nogy, o ensaísta revelado nestas “Saudades dos cigarros que nunca fumarei”.

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Saudades dos cigarros que nunca fumarei. (Foto; Reprodução)

Mas é preciso que se diga: as saudades do Nogy tem seus vestígios arqueológicos. Anteriores às minhas, são saudades arcaicas que suscitam ao leitor: saudades do inglês G. K. Chesterton, do pernambucano Nélson Rodrigues e do carioca Millôr Fernandes.

Nogy, que nasceu há quatro décadas, tem um pé nos tempos pretéritos, seja pelo domínio do idioma, da apurada semântica, seja pela mui especial mirada do mundo.

Pesquisas mais recentes indicam que o ensaísta é do tempo em que estes eram forjados pela mãe a tapas na nuca, à saída da escola primária; por trabalhos em sítios arqueológicos, por jornadas intermináveis na biblioteca de Jacareí (sua terra natal); pelo exercício paciente da escrita em blogs e pelas incansáveis discussões em grupos do Google – jamais em cursos de escrita criativa.

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Coluna de Nogy na Gazeta do Povo. (Foto; Reprodução)

Antes dos blogs, vamos encontrar o assíduo frequentador de bibliotecas em um sítio arqueológico, ressaltando a importância da pesquisa, antes de se tornar colunista do jornal curitibano Gazeta do Povo.

No registro da Folha de São Paulo de 22 de novembro de 1998, consta que Os estudantes Gustavo Nogy, 18, e Elisângela Cristiane de Moraes, 19, são os mais jovens integrantes da equipe de 28 pessoas da empresa Zanettini Arqueologia que estão trabalhando no sítio Villa Branca. As pessoas estão começando a entender que a arqueologia tem uma importância”, disse Nogy, estudante de terceiro colegial.

Na arqueologia que persigo, digo a você, leitor: as pessoas estão começando a entender a importância do ensaio e a qualidade dos ensaios de Nogy.

Gostaria de poder dizer dele o que dissera de Eça de Queirós seu amigo Ramalho Ortigão, tido como o mais íntimo dos amigos, o mais dedicado dos companheiros, mas não posso, pois dele sou apenas amigo virtual. Ocorre adequado aplicar a ele outra característica comum ao velho antepassado lusitano com esta citação das “Farpas escolhidas”:

Vós outros, meus caros homens de espírito, tendes infinita graça por certo – imensa graça boa, legítima, portuguesa, perfeitamente correcta, perfeitamente literária, tudo quanto quiserdes bom, magnífico, ótimo –, mas o humour, o bom humour, aquilo que realmente se chama o humour, vós não o tendes. Tem-nos dito que sois humoristas? Isso é que quem vo-lo diz conhece tanto o humour quanto o humour vos conhece a vós. Não, não sois humoristas. O humorista é Eça…

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E assim seguia Ramalho sobre o bom Queirós de outros tempos. Ele sabe “pôr a tinta que ri ao pé da tinta que chora. E aqui sigo eu sobre meu amigo virtual Gustavo.

Pois eu digo: o Nogy é do tipo que junta a essas duas a tinta que pensa – virtude comum aos que esgrimem tão bem o idioma por tomarem como pressuposto pensar antes de escrever.

O livro objeto desta insípida crônica é uma delícia e uma revelação, já o disse no ruidoso mundo das mídias sociais e o reafirmo aqui – sábio o leitor que daqui pular logo para o livro.

Gustavo Nogy reabilita uma escrita que prova que “nem tudo precisa ser grave na vida”, dando razões para se rir e pensar a um só tempo – naquela linha descrita num poema de Millôr Fernandes: “Tudo que eu digo, acreditem,/Teria mais solidez/Se, em vez de carioquinha,/Eu fosse um velho chinês”.

Chego mesmo a acreditar na tirada chestorniana do autor, quando deparo com isto: “quem lê um livro como este não é uma pessoa séria, afirmo-o, com a insuspeita opinião de que o escreve” – o que me reforça o direito a pensar que Nogy pratica aquela espécie de “humour” inglês.

Ora, sabe o ensaísta aqui revelado que “livros são objetos inocentes e perigosos” e, ainda assim, defende o direito à reedição de um livro que muitos não querem ver nas livrarias ou exibir em suas estantes – “Minha luta”, de Adolf Hitler.

No ensaio “É isto um livro?”, Nogy se apoia na frase de George Steiner para defender este direito à reedição daquele e de outros livros odiosos:

“O poder indeterminado dos livros é incalculável. É indeterminado precisamente porque o mesmo livro, a mesma página pode ter efeitos inteiramente díspares sobre os seus leitores. Pode exaltar ou aviltar; seduzir ou repelir; intimar à virtude ou à barbárie; expandir a sensibilidade ou banalizá-la. Em termos extremamente desconcertantes, pode fazer uma e outra coisa, quase no mesmo momento, num impulso de resposta tão complexo, tão rápido na sua alternância e tão híbrido que nenhuma hermenêutica, nenhuma psicologia poderá predizer ou calcular sua força.

O autor de “A poesia do pensamento” é retomado por Nogy no ensaio “O último bípede” – é este “George Steiner, quase silencioso” que, como o crítico, “observa a tudo com indisfarçável melancolia” quando escreve sobre o desaparecimento do “espírito europeu”, o ocaso de uma civilização que se envergonha de seu passado.

Falando em cuidar do presente, Nogy nos propõe uma tarefa simples (em “Mula sem cabeça”):

“Este nosso presente, cheio de trapaças e superstições, tornar-se-á muito em breve nosso passado, as imagens e as construções simbólicas do passado [Steiner]. É preciso cultivar um passado melhor para os nossos filhos”.

O ensaísta Nogy quer cultivar isso e não refuga temas espinhosos. O presente que vem construindo nosso ensaísta não demonstra nenhum temor a temas polêmicos: aborto, feminismo, padrões de beleza, futebol, liberalismo, liberdade de escolha, capitalismo, teorias da conspiração, catolicismo, conversão, ateísmo, islamismo, terrorismo, filosofia, política, lulopetismo etcétera.

Tudo com muita graça. Charme.

Como um “Sêneca que vai à padaria” – para usar a expressão a ele atribuída por Alexandre, Nogy torna-se esta espécie rara de “um Marco Aurélio que ama o futebol”, fixando “o estilo rarefeito do jogo de Ademir da Guia” – ele, ensaísta de classe, relembrando o pai, reescreve a seu modo um poema a sua Jacareí.

No ensaio “Esta cidade não merece um verso” ele se confessa. Admite por comparação, texto que parodia poemas de Borges e Drummond que “o problema da cidade sou eu”.  O texto é uma confissão à la Gustavo Corção.

No entanto, ao fim do texto ficamos com a impressão de que Jacareí, mesmo tornando-se um quadro na parede, recebeu do filho ensaísta uma bela homenagem.

Essas “Saudades…” do Nogy deixam o leitor com a certeza de que a civilização se funda no diálogo e a leitura é fundamental ao processo civilizacional – como lembrou em artigo na Gazeta, sobre a morte do crítico George Steiner (04/02/2020):

Steiner não se contentava com a leitura dos textos canônicos para se exibir nas revistas de prestígio ou nas muitas aulas magnas. Não lia contra ou a favor, mas com. Evitava afirmar ou negar; preferia conviver. A cultura era, para ele, um ambiente. Um lar. Lia para compreender – para ouvir – as muitas vozes que se confundem e clamam por socorro e beleza. O ato de ler se convertia, assim, numa ética da responsabilidade.

Baseado na lição de Steiner, nosso ensaísta de charme reafirma esta “ética da responsabilidade” lendo e escrevendo e nós, seus leitores, nos afirmamos na leitura como seres humanos – “seres que, salvo engano, servem-se da linguagem articulada para se fazer compreender e para compreender os outros” – como afirma Nogy em “Meu mel, não diga adeus”.

Este tipo de aproximação do livro de Nogy é o que desejo a você, caro leitor, que encare sem preconceitos o ensaísta aqui revelado, sublinhando a tinta do pensar sempre em defesa da “sensibilidade moral” – esta “fragílima criação humana – cultural, civilizacional; portanto, artificial – que se pode perder a qualquer momento”.

Desejo fortemente que esta fagulha divina nos livre daquele pecado “próprio da natureza” e que Nogy designou como o terrível “instinto de esmagar” – seja o feto (na prática do aborto), ou o Outro (nas discussões irracionais da web), o oponente, o adversário (nas práticas insanas das “paixões políticas como curiosas doenças”). Desejo ainda que a leitura lhe seja leve como sói ser a leitura dos grandes livros, principalmente dos menos pretensiosos.

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