John Deely – O filósofo da verdadeira era pós-moderna

William Passarini

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Um resumo de dois textos de um dos últimos grandes filósofos contemporâneos

Parte I – Resumo do Primeiro Capítulo de Four Ages of Understanding

Pretendo com estes dois textos realizar um resumo do primeiro capítulo do livro Four Ages of Understanding e do diálogo ficcional A Sign is What?, ambos de John Deely, e intercalar alguns comentários sobre o pensamento geral desse filósofo, semiólogo e uma das personagens de maior destaque na filosofia recente. Embora, de certo modo, ainda estejamos no início do Século XXI, podemos afirmar com certeza que a obra de Deely terá um profundo impacto neste século. Apesar de não ser ainda muito conhecida, tenho certeza de que em poucos anos será feita justiça ao valor inestimável dessa obra.

Deely possuía um estilo de escrita dificílimo e penoso, vale alertar, muito disso em razão de seu amplo domínio da linguagem escolástica, um domínio tal de sutilezas dessa linguagem que certa vez, ao ler uma tradução anterior à sua do Tratado do Signo, Deely percebeu um erro sutilíssimo nessa tradução, um erro que deturpava todo o sentido da noção de signo em João Poinsot, e não lhe restou outra alternativa a não ser apresentar o erro aos tradutores, os quais ficaram profundamente envergonhados.

Além de Four Ages of Understanding e A Sign is What?, uso como base teórica os livros Introducing Semiotic, Intentionality and Semiotic; também uso os artigos Semiotic and the Liberal Arts, The Grand Vision, Physiosemiosis in the Semiotic Spiral, Toward a Postmodern Recovery of “Person”, Building a Scaffold, The Absence of Analogy; além das oito aulas magistrais de Brian Kemple ministradas em um seminário sobre a obra de Deely no Lyceum Institute, e 12 aulas do próprio John Deely também disponibilizadas no Lyceum Institute.

No princípio, pelos primeiros filósofos, a realidade não foi simplesmente descoberta, ela foi celebrada.
John Deely – O filósofo da verdadeira era pós-moderna 1

No primeiro capítulo de sua obra magna Four Ages of Understanding, Deely afirma que as origens da filosofia são obscuras. O simples recorrer à referência etimológica de “amor à sabedoria” não ilumina as trevas do temor e do maravilhamento, e a única solução a este enigma da natureza da filosofia é voltar nossos olhares para a ação dos filósofos, já que a ação segue o ente, segundo o famoso adágio medieval. 

A característica marcante dos primeiros filósofos, segundo Deely, foi especular a constituição dos objetos da experiência humana, afirmando, portanto, que esses objetos possuem alguma dimensão independente das relações com os seres humanos, introduzindo no espírito humano a ideia de realidade, de algo que tem seus fundamentos independentes da cognição humana, e independentes também da sua própria aparição existencial no tempo e no espaço. Mas em pouco tempo, essa atitude dos filósofos volta-se para o interior, volta-se para a possibilidade do próprio conhecimento. Assim é o esboço da história da filosofia na Grécia, que se iniciou com os naturalistas, passando pelo questionamento da possibilidade do conhecimento com os sofistas, e entrando finalmente em Sócrates com a investigação moral. 

Podemos esquematizar essa história dizendo que a busca pelos fundamentos e pela constituição das coisas independentes do homem levou-nos à cosmologia e à ontologia, e a busca reflexiva levou-nos a teorias sobre o conhecimento ou epistemologia (não levo aqui em consideração nos termos epistemologia e teoria do conhecimento a problemática separação entre corpo e mente afirmada pela filosofia moderna desde Descartes); e Deely continua dizendo que o drama histórico da filosofia se resume à dialética entre essas duas atitudes, ontológica e epistemológica. 

Mas o surgimento da filosofia está também relacionado com a linguagem, sendo essa relação mais profunda do que geralmente se pensa. A expressão analítica em prosa é, em senso comum, a forma por excelência do discurso filosófico, e a história da filosofia na Grécia coincide exatamente com a transição do discurso poético para o discurso em prosa. Mas essa transição não acontece da noite para o dia, pois vemos que os primeiros filósofos continuavam utilizando a linguagem poética, como no belíssimo poema de Parmênides. Portanto, logo no início, a filosofia e a poesia estavam intimamente ligadas. Deely fará a seguinte comparação: assim como a ciência no início foi uma forma de filosofia que lutava para se libertar daquilo que era inverificável empiricamente, daquilo que era especulativo apenas, do mesmo modo a filosofia no início foi uma forma de poesia que lutou para se libertar da mitologia, do animismo e da metáfora.

Algo curioso acontece: depois de certas formas serem consolidadas pela tradição, esquecemo-nos de que no início essas formas foram recebidas como um mistério. As primeiras tentativas da expressão em prosa foram recebidas pelo público como obscuras. O curioso é justamente que hoje em dia entendemos a forma poética como obscura e misteriosa e o discurso prosaico como translúcido, mas nem sempre foi assim.

John Deely– O filósofo da verdadeira era pós-moderna

Deely vai se questionar por que a filosofia no início, embora buscando uma expressão rigorosa, mantinha ainda uma linguagem poética. E ele vai perceber que isso está ligado à estrutura própria da natureza humana. Não apenas o ser humano é um animal social, outros animais vivem num contexto de organização e hierarquia, mas o homem é um animal político, tem a capacidade de transformar sua estrutura social numa civilização, e é aí que a filosofia aparece, e em tudo isso o papel da linguagem é fundamental; é compreendendo a linguagem que compreenderemos a necessidade da expressão poética na origem da filosofia. E Deely liga a linguagem com o entendimento. É nesse momento que ele dirá uma frase espetacular: a realidade não foi simplesmente descoberta, ela foi celebrada.

Para explicar, então, melhor o fenômeno da linguagem, Deely afirmará uma diferença entre a linguagem, como uma atividade específica da espécie humana, e a comunicação, como um fenômeno universal; sendo a confusão entre ambas apenas efeito do senso comum.

Por exemplo, porque os animais usam sons para se comunicar, chamamos então isso de linguagem, mas há aí um equívoco, o que realmente ocorreu foi uma comunicação, mas não linguagem. Afirmando o entendimento da ciência contemporânea, podemos dizer que o fenômeno da linguagem surge tardiamente no desenvolvimento do universo, mas logo no início do desenvolvimento do ser humano. A linguagem se identifica com um modo particular de remodelar o mundo na cognição.

Para entendermos o que é diferente no modo humano de modelar o mundo, temos de entender primeiro que cada animal formula o seu próprio modelo do mundo de acordo com a sua própria constituição biológica e com seus interesses. Então, dependendo dos canais da sensação, dos sentidos, dos órgãos da consciência, dependendo dos órgãos de que esses animais são dotados, cada organismo torna-se consciente de certos aspectos do seu entorno físico, mas não de outros. Portanto, dependendo da sua constituição biológica, cada organismo vai reagir diferentemente aos sinais que recebe do ambiente, como o lobo é atraído pela ovelha, e a ovelha repugna o lobo.

O que Deely quer fazer com isto é estabelecer a distinção entre o mundo físico e o mundo objetivo. O mundo físico ou subjetivo é o mundo que existe independentemente de ser conhecido ou não, e o mundo objetivo, como a origem da palavra diz, é o mundo que se coloca perante uma consciência, é o mundo tal como conhecido, e, portanto, é uma parte apenas do mundo físico. John Deely especifica que aseletividade e a rede de relações específicas de uma espécie que de acordo com tal um organismo se torna consciente do seu ambiente é chamada Umwelt, uma expressão técnica que significa o mundo objetivo, esse mundo apreendido, estruturado numa consciência.

E cada tipo de organismo cognitivo tem por assim dizer sua própria psicologia, seu próprio modo de ver o mundo, e é isso que objetivo significa: aquilo que existe como conhecido. Enquanto o mundo mesmo, o entorno físico – físico aqui não no sentido da ciência física, e subjetivo não no sentido psicológico; aqui temos de tomar cuidado com as palavras físico e subjetivo, pois referem-se a um ser que tem uma existência em si, própria, independente de uma consciência – é algo mais do que o que está visto, e tem uma organização diferente, embora análoga, da organização que adquire quando visto.

E as coisas no ambiente podem ou não podem existir como conhecidas, podem ser conhecidas ou não. Quando são conhecidas, elas são objetos e coisas. Aqui Deely fará uma distinção entre objeto e coisa. Objeto é aquilo que é apreendido por uma consciência, aquilo que está perante uma consciência, e coisa é aquilo que tem uma existência independente da consciência. Uma coisa pode ser um objeto, se for conhecida, e, portanto, uma coisa não é um objeto quando ela não é conhecida. Do mesmo modo, pode existir um objeto sem ser uma coisa, um objeto que não tenha uma existência independente da mente, por exemplo um ser imaginário ou mitológico, que tem uma existência objetiva, mas não tem uma existência física, subjetiva.

Deely também especifica aquilo que chamará de Innenwelt: A psicologia ou os estados interiores, tanto cognitivos quanto afetivos, com base no qual um organismo individual se relaciona com um ambiente físico ao constituir o seu mundo objetivo particular ou Umwelt, um tipo de mapa cognitivo, com base no qual um organismo se orienta perante o seu entorno. O Innenwelt, portanto, é subjetivo no sentido de que todas as características físicas das coisas são subjetivas, ou seja, pertencem, existem dentro de alguma entidade distinta, dentro do mundo das coisas físicas. O Innenwelt é parte daquilo que identifica este ou aquele organismo como distinto dentro do seu entorno e da sua espécie.

Os estados psicológicos subjetivos, que constituem o Innenwelt, constituem-no não apenas na medida em que pertencem a um sujeito que ajudam a identificar, mas também enquanto eles propiciam, fazem com que ocorram relações que ligam aquele sujeito individual com outro que ele mesmo, e em particular ligam esse indivíduo com o seu entorno físico objetificado.

Mas, ponto importante: essas relações, que surgem ou provêm dos estados psicológicos, não são elas mesmas subjetivas, pois se elas fossem subjetivas, elas não seriam relações, se elas fossem subjetivas, não seriam links entre o indivíduo e o entorno.Deely começa então a desbancar o nominalismo.

Em resumo, as relações estão acima dos estados subjetivos, elas dependem deles, não existem separadas do indivíduo, mas não existem no indivíduo, existem para além do indivíduo. Se não fossem assim, não existiriam relações. Elas existem entre o indivíduo e aquilo de que o indivíduo está consciente. E aquilo de que o indivíduo está consciente existe como o término da relação.

Deely dirá que a relação minimamente envolve três fatores: aquilo que é a base, que é o fundamento da relação, ou seja, esses estados interiores; a própria relação; e aquilo que é o término da relação, aquilo de que o sujeito está consciente. O Innenwelt é o primeiro fator, que dá surgimento ao segundo, e o Umwelt é o terceiro fator como término do segundo. E esse segundo fator, ou seja, as próprias relações ou a rede de relações, é o que constitui o mundo objetivo enquanto distinto tanto da subjetividade daquele que possui o Innenwelt, quanto da subjetividade das coisas do ambiente físico, na medida em que elas existem separadas da rede particular de objetos conhecidos por este ou aquele organismo. A relação existe acima da subjetividade do sujeito que conhece e da subjetividade do objeto conhecido.

Deely pontua: Os componentes cognitivos de um Innenwelt são chamados ideias e os componentes emotivos e afetivos são chamados sentimentos ou sensações. Os componentes conhecidos e apreendidos de um Umwelt são chamados objetos significados.

Detalhando mais ainda o processo cognitivo, pode-se dizer que ele é duplo. Primeiro temos os canais cognitivos diretos através dos quais as características físicas do ambiente são objetificadas, e esses primeiros canais são chamados de sentidos externos, ou seja, são os cinco sentidos; e os sentidos externos são seletivos, mas não interpretativos, e quando falamos de sensação estamos falando primeiramente em termos daquelas características do ambiente que são conhecidas pelo sentido externo. Deely agora vai distinguir sensação de percepção, ou seja, na sensação não existe ainda uma dimensão interpretativa. Então a primeira dimensão é essa dos sentidos externos.

Mas essas características e qualidades do ambiente apreendidas pelos sentidos externos são organizadas na consciência, e aqui entra a dimensão interpretativa, aqui surgem os sentidos internos.

Acrescentada às sensações apreendidas pelos sentidos externos, está a percepção – a organização interpretativa dos sentidos externos por meio dos sentidos internos. Em resumo, a percepção interpreta o que a sensação apresenta, a percepção une as sensações para formar os objetos da experiência, e os objetos dentro da experiência não são exatamente o mesmo de quando apreendidos pelos sentidos externos. Quando esses objetos agem fisicamente sobre o organismo cognitivo, ativando os poderes dos sentidos desse organismo, eles estimulam a ação dos sentidos internos que os interpreta e torna presentes na percepção.

Aqui temos a antropologia tradicional, que foi aperfeiçoada pelo conhecimento da psicologia científica, mas que em hipótese alguma esta desmentiu ou mudou absolutamente aquela, pois ela continua válida de modo perene: possuímos os sentidos externos, que correspondem aos cinco sentidos; e os sentidos internos, que correspondem ao sentido comum que unifica esses objetos dos sentidos externos, que até então eram individuais, ou seja, o ouvido só ouve, a visão só vê etc., correspondem também à memória, à imaginação e à estimativa, que é a faculdade que permite avaliar os objetos percebidos, se um determinado objeto deve ser buscado ou deve ser evitado.

Então, diz Deely, por meio desse processo, o Innenwelt e o Umwelt se desenvolvem como estruturas correlativas, superordenadas ao ambiente e relativamente independentes dele. O Innenwelt é subjetivo, mas o Umwelt é objetivo. O Innenwelt é privado, mas o Umwelt é público.

Por exemplo, duas pessoas têm duas ideias iguais, mas essas ideias não são materialmente iguais, duas pessoas têm duas ideias, mas essas ideias enquanto realidades psicológicas do Innenwelt são o fundamento para uma relação comum com um objeto. Enquanto cada pessoa pode ter a sua própria ideia particular, privada, aquilo de que a ideia é, aquilo a que a ideia se refere pode ser o mesmo para as duas pessoas. A ideia materialmente é distinta para cada pessoa, mas o objeto, aquilo a que ela se refere pode ser o mesmo.  Embora o objeto seja o mesmo, ainda assim essas pessoas podem reagir de modo diferente a ele. O Innenwelt dá surgimento ao Umwelt e o sustenta, e cada Umwelt por sua vez dá surgimento a um número indefinido de possibilidades para comunicação e também para a não-comunicação, para o “desentendimento”. E Deely diz colocar essa palavra desentendimento entre aspas porque aqui vai marcar a distinção do Umwelt especificamente humano: o Lebenswelt linguístico.

O animal humano é o único animal que se torna consciente da diferença entre objetos e coisas; nos animais, objetos e coisas se identificam, mas o homem consegue questionar a diferença entre aquilo que ele compreende e aquilo que o objeto é em si. Assim, Deely esclarece,o animal humano é o único animal que se torna consciente da diferença entre objetos e coisas, em termos da diferença entre aquilo que está relacionado ao organismo que conhece e aquilo que está separado, que existe independentemente dessa relação. O ser humano é o único animal capaz de distinguir entre relações como tais, que não são percebidas diretamente pelos sentidos pois são invisíveis, e as coisas relacionadas.

Essa capacidade é o que queremos dizer por entendimento, a capacidade de perceber a diferença entre essas duas coisas: objetos e coisas, relações e objetos relacionados. E tal capacidade é a origem de tudo o que é distintamente humano. A linguagem anda junto com o entendimento. Deely detalha perfeitamente a função da linguagem, queé a habilidade de reorganizar o Innenwelt de modos tais que não estão presos à constituição biológica do organismo. A sensação e a percepção estão presas, amarradas na estrutura biológica. Mas essa capacidade do entendimento consegue sair da limitação da estrutura biológica, a ponto de considerar por exemplo se determinados objetos são tais como os percebemos ou não, se existem objetos que não são sensíveis, como por exemplo a existência de deuses ou anjos, que não têm corpo material. Com o entendimento e a linguagem, transcendemos a limitação da estrutura biológica. A linguagem é essa possibilidade de considerar as coisas conforme relações que não estão presas na nossa constituição biológica. Como diria Jacques Maritain: “Quem nunca contemplou a possibilidade da existência de anjos jamais será um metafísico”.

O mundo objetivo dos seres humanos, o Umwelt humano, é único entre todos os Umwelts dos outros animais, porque ele é maleável e transcende a biologia. Deely faz a comparação do mundo objetivo humano com o brinquedo Tinkertoy, um tipo de brinquedo em que se vai montando várias construções possíveis com várias pecinhas. Esse mundo humano é maleável, de modo que ele pode ser desmembrado e remontado de várias maneiras que se queira. Por exemplo, a sociedade humana não é apenas hierárquica como as sociedades dos outros animais, pois essa hierarquia é também civil, pode ser incorporada em padrões diferentes de governos aceitos pelos membros dessa sociedade, e esses padrões podem ser mudados futuramente.

A essa particularidade do mundo humano muitas pessoas deram vários nomes, como por exemplo Edmund Husserl com seu Lebenswelt, o mundo da vida. Deely apropria-se desse termo de Husserl, mas o utiliza de modo diferente. Então, cada Umwelt, enquanto constituído simplesmente pela percepção, é em princípio finito e fechado, mas o Umwelt humano, enquanto modificado pelo entendimento, é finito apenas de fato, em princípio ele é aberto para o infinito. Isso é algo que Protágoras não compreendeu quando afirmou o homem ser a medida de todas as coisas, pois com a capacidade de distinguir objeto e coisa, o homem pode ter uma compreensão apodítica e não obter apenas uma medida arbitrária. Assim, a filosofia de Deely pode superar a limitação sofista da negação do conhecimento que apresenta o homem como a medida de todas as coisas, algo que está profundamente presente no pensamento moderno.

Se afirmamos que as espécies biológicas surgem por um processo de evolução, Deely afirma defendendo o evolucionismo, fundado também na visão de Peirce e não do evolucionismo puramente materialista, se afirmamos que as espécies biológicas surgem por um processo de evolução, por meio do qual novidades são incorporadas no ambiente como características subsequentemente regulares, teríamos de dizer que o entendimento humano ou a linguagem é uma adaptação constitutiva de nossa forma de vida. Mas quando algum novo arranjo de apreensão é externalizado ou codificado, de modo a ser comunicável para outros, nós temos um caso não de adaptação, mas do que veio a ser chamado na biologia de exaptação, a aplicação de adaptações evolucionárias a novos fins além daqueles para os quais as adaptações surgiram originalmente.

Deely continua detalhando: a linguagem surgiu como um novo modo de ver o mundo. Comunicada nesta ou naquela forma particular, a linguagem é exaptada. Em nossa espécie humana, um dos modos nos quais a comunicação mais prontamente surge é através do uso dos sons vocais. Mas o uso dos sons para comunicação não é a raiz da linguagem. Muitos animais, que não têm uma capacidade linguística, têm uma ampla capacidade vocal. A exaptação da linguagem na fala é especificamente do ser humano, e apenas uma das formas de incorporação que a linguagem pode tomar. Pois a linguagem pode também ser exaptada na forma de escrita ou de gesto (impossível não lembrar aqui do famoso caso de Helen Keller).

Às vezes é confuso dizer quando um certo comportamento parte do entendimento humano ou da percepção. As ferramentas por exemplo são a incorporação de relações adaptando uma estrutura material para um propósito. Os seres humanos criam ferramentas, mas os outros animais também as criam. O comportamento linguístico vai além da incorporação de relações em estruturas materiais, diz Deely, para expressar relações enquanto significando possibilidades que excedem a percepção, transcendem a percepção e a sensação, possibilidades que não podem como tais de nenhuma maneira serem percebidas diretamente pelos sentidos. A linguagem então promove a transformação da organização social em relações culturais, e, por meio da cultura, no desenvolvimento da civilização.

A civilização então enquanto uma ordem social promovendo uma criação cultural pode apenas ocorrer numa sociedade de animais linguísticos. A linguagem liberta o indivíduo e o grupo de uma organização amarrada a uma herança biológica e abre caminho para possíveis mundos alternativos, distintos do que está experienciado no aqui e agora. E Deely dirá que essas possibilidades estão ilustradas nas diversas civilizações da Suméria, do Egito, da Babilônia, da Assíria, da Pérsia, da Índia, da China etc., que surgiram há aproximadamente 6.000 anos; civilizações fundadas em uma explosão semiótica da linguagem. E esse período por exemplo dos vedas, do hinduísmo, do budismo, do confucionismo foi um período profundamente ativo da civilização humana.

Em comparação com essas mais antigas, a civilização grega é de certo modo um pouco tardia. E Deely dirá que em muitos aspectos a Grécia herdou mais que iniciou. Quando dizemos que a filosofia ocidental surgiu na Grécia, temos de levar em conta a herança que a Grécia herdou das civilizações anteriores a ela, e essa herança que recebeu do Egito, da Babilônia, foi um dos solos, um dos fundamentos para o surgimento desse pensamento, dessa nova linguagem da filosofia. Foi através dos gregos antigos que a humanidade se tornou consciente da diferença entre Umwelt e Lebenswelt, claro que não nesses termos, mas no conceito representado por esses termos.

Deely diz que o que a filosofia provou ser acima de tudo é uma influência ativa dentro do Umwelt humano para tornar seus habitantes conscientes da abertura em princípio que distingue a investigação humana dos hábitos sociais dos animais limitados a interpretações perceptuais e dos diferentes métodos de investigação necessários para resolver diferentes tipos de questões.

Deely ainda esclarece que o Umwelt humano, enquanto aberto em princípio ao infinito através da linguagem, ainda assim tende na sociedade, como qualquer Umwelt animal, a se fechar em si mesmo e achar que há apenas o seu caminho e não há outras possibilidades de caminhos. Despertar e manter vivo na comunidade humana a diferença entre o Umwelt animal e o Lebenswelt humano, fazendo-se perceber as possibilidades do entendimento humano e forjando ao longo dos séculos uma comunidade de questionadores comprometidos com atingir a verdade aos poucos e sempre e cada vez mais integralmente, mostrou-se ser então o perfil da filosofia, sua missão, sua tarefa.

A filosofia, diz Deely, emerge dentro da civilização como uma dimensão através da qual o entendimento se confronta com a experiência do outro enquanto outro, enquanto o indivíduo confronta-se com uma experiência da irredutibilidade do mundo objetivo à sua experiência dele, e é por isso que a noção de realidade quer dizer aquilo que é anterior e independente do pensamento e da ação humanos, e no Umwelt animal não há diferença entre objetos e coisas.

Despertar-se do sonho, aqui Deely caminha para o final deste excelente capítulo, é despertar-se para essa diferença entre o mundo objetivo e o mundo físico, é descobrir o outro no outro, ou seja, neste ser enquanto irredutível à minha experiência, separado e distinto da minha experiência.

Charles Peirce criou o termo “secundidade”, o qual podemos ligar ao mundo físico, e essa ordem física é descoberta por meio do mundo objetivo. Portanto, Deely dirá, não há nenhuma surpresa que os primeiros filósofos, despertando-se do sonho de uma vida puramente animal e imaginária, perceberam-se forçados a usar a poesia tentando manter-se despertos desse sonho. E finaliza com a observação do filósofo Jacques Maritain, que muito bem notou que o ser humano tem muitos sonhos, e a filosofia não pode se tornar mais uma dessas outras sonolências.

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