Um monumento à carne de Poe

Carlos Eduardo Heinig

Em algum lugar, em Baltimore, repousa um monumento, finamente ornamentado e esculpido com os traços macabros de Edgar Allan Poe. Não que isso o torne feio! Ao contrário: o macabro torna o inconsciente refém e este adora o macabro. O bronze deixa, junto com os contos, os poemas e noveletas um traço de tempo que pode se parecer muito com o eterno. Mas, e quanto ao Poe de carne e osso?

Onde repousam seus ossos já se sabe, onde estão seus livros e poemas também. Aliás, em algum lugar dos Estados Unidos, há alguma escola em que a professora ou professor ‘obrigaram’ os alunos a lerem algo deste grandioso escritor. Mas, quem se importou quando ele foi encontrado na sarjeta, com delirium tremens e morreu três dias depois, como indigente?

Nem mesmo os norte-americanos se preocuparam com sua literatura.  Baudelaire quem o trouxe à tona. “Foi preciso a crítica estrangeira, particularmente a francesa, para resgatar Poe e depositá-lo no seu merecido lugar.”[1] As Flores do Mal não seriam tão ‘do mal’ se não houvesse os poemas góticos de Poe, a fim alicerçar um profundo espírito lógico e condutor da obra poética de Baudelaire.


Um monumento à carne de Poe

“[…] a tradução francesa dos contos, por Baudelaire, e dos poemas, por Mallarmé, que conduziu Poe ao Valhalla”.[2] É claro que a arte de Poe, a priori, soava à Europeia. Com um fascinante brilho de Walpole ou de Shelley (tanto marido quanto esposa), com a acuidade de Stoker e até os cuidadosos contos de Borges, aqui da América do Sul (muito embora, ele também soava à Europeia).

O autor nasceu em Boston, Nova Inglaterra. Essa região galardonou os Estados Unidos com inúmeros autores brilhantes: Longfellow, Emerson, Thoreau, Gillmann, Lovecraft e – hoje – o autor de Best-sellers – Stephen King que, apesar de não estar nem mesmo próximo à altura de Poe, ainda escreve sobre o mesmo tema.

Voltemos à carne. “Não pode ter sido por acaso que se levou dez anos de trabalho para construir uma lápide barata sobre o seu túmulo esquecido em Baltimore; que a lápide só foi realmente colocada 26 anos depois de sua morte; que nenhum escritor seu contemporâneo colaborou no projeto; e que o único que apareceu à cerimônia final foi Walt Whitman. O que, diga-se de passagem, foi irônico: Logo Poe, que adorava ‘emparedar’ e ‘sepultar’ pessoas vivas em seus contos. Sua carne ficou ‘à deriva’ pelos ‘cais’ de Baltimore. A chacoalhar versos com pentâmetros ou sonetos, ou que os corvos lhe comiam as fibras até os ossos, até lhe sobrar apenas um esqueleto.

Até mesmo em Língua Portuguesa, houve uma preocupação com a obra de Poe. Duas traduções impecáveis (e muitas outras, a posteriori): Machado de Assis e Fernando Pessoa. Uma mais ‘estrutural’ e outra, mais ‘sonora’. Possivelmente mais lido em Português.

Muitos contos são, de fato, repetitivos: as mesmas casas em ruínas, as mulheres fantasmagóricas e misteriosas, os ambientes claustrofóbicos e a vingança. Mas, urge-se perguntar: não seria a estranheza da vida também essa repetição? Poe não deseja assustar, mas alertar, mostrar: “Vejam, olhem! Isto somos nós! Uns bêbados vingativos, uns avarentos e patifes.” Provavelmente, esta é a razão pela qual ele foi ignorado por três décadas quase pelo seu povo.

Um monumento à carne de Poe 4
Um monumento à carne de Poe. (Imagem: Tursunbaev Ruslan/Rene Martin/Shutterstock/D Peterschmidt)

Quem deseja ver a si próprio sem os enfeites? Logo um povo orgulhoso, proudly, que construiu uma ‘potência’, que tudo podia. Mas, que – ao fim do dia – era tão humano quanto os outros todos.

Não se nega, obviamente, a estranheza, o macabro, o onírico e o lírico na obra de Poe. Mas, também não se lhe nega a face humana. Do mesmo modo que não se nega a figura redentora e genial do poeta e escritor, mas que morreu de alcoolismo como um mendigo.

À procura de sua musa, tal como poeta grego, apenas foi enganado por Dionísio. E – tal como sua vida – seus contos foram se obscurecendo exponencialmente. Se Poe houvesse procurado uma linha apolínea de escrita, certamente teria tido uma vida mais bela; mas, infelizmente, seus contos seriam menos atraentes. O escritor precisa morrer pela pena. Do contrário, constitui-se de um covarde. Deixe-se a covardia aos leitores, que são passivos.

Sem as noites de tavernas, sem a sarjeta e sem a escuridão da madrugada, Poe nada seria. Apenas mais um ébrio a caminhar cambaleando pela capital de Maryland. E, de novo: voltemos à carne.

A visão do leitor de endeusar o escritor, torna Poe uma figura absolutamente insensível, cuja vida não teve importância. Cujo sofrimento, ao perder os pais ainda criança, ao perder a esposa precocemente e viver à revelia não tem relevância; quando, em verdade, isso foi o substrato para sua produção mais profícua. Toda sua vida degradada foi o adubo para seu trabalho.

Discute-se muito a respeito se a vida do escritor se deve ou não ser considerada junto de sua obra. O New Criticism, por exemplo – de Lionel Trilling – o nega. Crê em uma separação entre ambos. Talvez. Todavia, mui provavelmente estejam – ao menos em parte- enganados. Qualquer Magnum opus está repleto de características, personagens, fatos, acontecimentos e – até mesmo – diálogos da vida do próprio autor. Vê-se isso em Poe, Joyce, Proust, Woolf etc.

Poe escrevia o que via: um bar morno, escuro, a rescender um odor de mofo, com indivíduos sujos (tanto em moral quanto em corpo) a encher canecos de vinho fortificado e barato. Entes quase fantasmagóricos, figuras (que até poderiam ser cômicas, se não fossem trágicas…) que iam caindo e cambaleando pelas ruas, até que algumas caíam e – ali – eram sepultadas. Que foi o caso de Edgar Allan Poe. Caiu e morreu três dias depois.

Naquele momento, todos os seus versos, The Raven, os contos mais famosos e eloquentes, sua crítica e seus ensaios eram quase uma diversão esquecida. Não passava de uma trabalho de um bêbado barato. De um vagabundo cujos versos estavam escritos em jornais velhos e molhados com o ‘sangue de Cristo’.

Mencken fala da percepção do homem, sob a ótica de Bierce (mas, que se pode atribuir a Poe): “[…] para ele, podia ser o mais estúpido e ignóbil dos animais, mas era também o mais divertido.”[1]

Tal afirmação pode parecer inocente, mas a diversão pode advir da crueldade. Lembre-se do conto Hopfrog em que todos são banhados a piche e o ‘bobo’ lhes atira fogo como forma de vingança. Ele se ri. Os papeis se invertem. Todos os membros da corte constituem uma bufonaria a arder em chamas; enquanto o Bobo, ri-se que objeto das risadas. O riso pode ser maléfico.

Whitman olha (eu acho) o túmulo de Poe.

And I know the spirit of God is the brother of my own,[4]

O espírito como  πνεῦμα[5], como uma forma divina. O que é o Gótico, senão o ser humano deformado? Ele aparece em Faulkner, McCarthy, Capote etc. Autores que não previam escrever sobre o macabro, mas sobre o humano, em suas circunstâncias mais mórbidas e dolorosas, o ser humano em seu limite. O medo, entretanto, é uma delas. E ele precisa assumir uma forma. Ele assume algumas delas, e – entre elas – os monstros. Lobisomens já aparecem na literatura da Roma Antiga, no Satiricon, de Petronius.

Esse cheiro a formol, esse ambiente obscuro – ou cinéreo – de um morgue, ou de vinho acre dos pubs, que Poe nos apresenta é o que há de mais sincero e natural no homem: a sua carne. Ainda que seu πνεῦμα seja superior, só se consegue ver a carne infelizmente. The flesh.            

Pensemos e olhemos cada poemas ou conto de Poe como um pedaço de sua carne (Hoc est enim corpus meum), não com repulsa, mas como parte de um todo, como nos mostra o poema (gótico) de Gregório de Matos. Esse todo que constitui o busto de um gênio.


[1] Mencken, Henry Louis. O livro dos insultos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Walt Whitman, in The Oxford book of american verse. New York: Oxford University Press, 1950.

[5] Do grego, ‘vento’ ou ‘espírito’.

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