Van Gogh & Impressionistas: Vantagens e Desvantagens da Tecnologia Digital

Verônica Daniel Kobs

No ano passado, foi lançada a exposição Van Gogh & impressionistas, que dava ênfase ao pintor holandês Vincent Willem Van Gogh (1853-1890). Projeções de imagens de quadros icônicos propiciavam ao público uma experiência imersiva de luzes e sons. No entanto, as pinceladas densas e aparentemente em desalinho não podiam ser percebidas da mesma maneira. 

Apesar disso, é óbvio que a mostra tinha qualidades, começando pela espacialidade. As paisagens inscreviam-se no chão, nas paredes e até no teto. As projeções ampliaram o alcance da imagem pictórica, a qual se movimentava, envolvendo o espectador em cores e magia.

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Relembrando Sonhos, de Kurosawa, o personagem inicia sua jornada em busca do mestre Van Gogh em um cenário que recria o famoso quadro “A Ponte de Langlois em Arles”, no qual predominam pedras e tons de verde, amarelo, alaranjado e azul (Fig. 1). Usando essa mesma obra, a exposição tecnológica projetou a imagem das rochas sobre o chão e as paredes do galpão, o que me provocou a sensação de estar, simultaneamente, no quadro impressionista e no filme do diretor japonês.  

Van Gogh & Impressionistas: Vantagens e Desvantagens da Tecnologia Digital
Figura 1: “A Ponte de Langlois em Arles” (1888), de Van Gogh. Disponível em: <https://virusdaarte.net/van-gogh-a-ponte-de-langlois/>

Utilizando outra tela de Van Gogh — “Amendoeiras em flor” (1890) —, que marcou a fase da influência da arte japonesa sobre a pintura do artista holandês, a exposição fez uso da sobreposição e do movimento para conferir narratividade à imagem, ao mostrar várias pétalas caindo (Fig. 2).

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Figura 2: Tela de Van Gogh (à esq.) e adaptação apresentada na exposição digital (à dir.). Disponível em: <https://santhatela.com.br/vincent-van-gogh/van-gogh-amendoeira-em-flor/> e <https://oregional.net/cultura-leva-servidores-para-apreciar-a-arte-de-van-gogh-impressionistas-143506>.

No entanto, uma observação atenta revelava que as pétalas caíam, mas as flores continuavam intactas, consolidando o uso da sobreposição e do molde vazado. Além disso, em outras paisagens, a sobreposição também aliou o movimento a certo decalque em desalinho. O desvio era mínimo, mas já era suficiente para mover barcos e ondas.

Brincando com aproximação e distanciamento, a exposição também variava os tamanhos das imagens: as maiores permitiam o zoom e as menores forneciam uma visão geral. Outro recurso utilizado foi a “panorâmica dramática” (MARTIN, 2005, p. 66), já que uma imagem surgia em diferentes lugares. Essa estratégia visual consegue “estabelecer relações espaciais, ou entre um indivíduo que olha a cena e o objeto observado, ou então entre um ou mais indivíduos, por um lado, e um ou vários outros que observam, por outro lado” (MARTIN, 2005, p. 66). Evidentemente, o efeito é positivo, pois, na exposição digital, o público movimenta-se livremente, durante as projeções.

Nesse contexto imersivo, ainda havia um totem central, no qual as imagens projetadas tornavam-se tridimensionais, como ocorre no caso deste autorretrato (Fig. 3).

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Figura 3: “Autorretrato” (1887), de Van Gogh (à esq.), e adaptação apresentada no totem central (à dir.). Disponível em: <https://santhatela.com.br/vincent-van-gogh/van-gogh-auto-retrato-1887/> e  Arquivo pessoal (Foto tirada pela autora deste texto).

No exemplo, utilizou-se o “grande plano”, que geralmente focaliza um “rosto, ampliado pela lente”, resultando em “presença real” e “evidência de vida” (MARTIN, 2005, p. 48). Como se não bastasse isso, o “plano contrapicado” “engrandece” o sujeito representado (MARTIN, 2005, p. 51). No espetáculo digital isso é potencializado, porque o público vê Van Gogh piscando algumas vezes. 

Sem dúvida, a ilusão confere temporalidade e ritmo às imagens, que saem dos limites da pintura para alcançar a dinamicidade das narrativas. No plano sensorial os movimentos correspondem “aos efeitos da montagem rápida sobre o plano intelectual (cerebral)” (MARTIN, 2005, p. 58). Dessa forma, “um quadro rígido” torna-se “fluido e vivo”, em meio a uma espécie de “movimento balético” ou “coreográfico”, “modificando a cada instante o ponto de vista do espectador” (MARTIN, 2005, p. 57).

Na exposição digital, cada detalhe fez a diferença e, nesse sentido, a música também foi usada. Imagens, contrastes, cores, movimentos e sons criaram uma atmosfera “polissensorial” (WUNENBURGER, 1999, p. 33). A versão tecnológica baseada no quadro “Quarto em Arles” (1888), de Van Gogh, cumpriu todos os quesitos relacionados à imersão e, para isso, o principal recurso utilizado foi a simultaneidade entre as projeções e a descrição do quarto, apresentada por meio de uma gravação em áudio.

Em diversos materiais sobre a obra do artista holandês, há menção a essa tela, que traz linhas retas, cores claras (com pequena variação cromática), além de mostrar o quarto com a janela fechada ― tudo para sugerir uma ideia de repouso, de acordo com o próprio pintor (Fig. 4). 

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Figura 4: Tela “Quarto em Arles”, de Van Gogh. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/31/cultura/1477935352_750416.html>.

Um último estratagema da mostra associava a escuridão total à luminosidade, momento em que eram projetadas imagens de telas com predominância de cores intensas, como o azul e o amarelo, e seus matizes. Portanto, a finalidade primordial do espaço totalmente preto é o contraste (MARTIN, 2005, p. 73). Dessa forma, gerava-se uma maior “impressão de profundidade espacial”, além de criar “uma atmosfera emocional e até certos efeitos dramáticos” (MARTIN, 2005, p. 72).

As duas obras que foram usadas para desencadear esses efeitos foram, principalmente, “Lírios” (1889) e “Girassóis” (1888), já que o azul dos lírios e o amarelo dos girassóis aparecem em diversos quadros do artista. Aliás, essas telas apresentam diferentes versões, que alteram tonalidade e luminosidade (Fig. 5), não apenas pela ação do tempo sobre a tinta, mas também por opção do próprio artista.  

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Figura 5: Os quadros “Girassóis” e “Lírios” (à esq.), de Van Gogh, e suas adaptações digitais (à dir.).   Disponível em: <https://www.viagemparaholanda.com>, <https://pimentanativa.com>, <https://www.arteeblog.com> e <https://aprovinciadopara.com.br>. 

Os fãs de Van Gogh sabem da importância dos girassóis nos quadros do pintor. Inclusive, a tela apresentada na figura acima, datada de 1888, é referência, já que se trata de uma natureza morta que apresenta um contraste para destacar a parte superior, das flores, gerando impressão de tridimensionalidade. Além disso, o amarelo transformou-se em uma cor fundamental na estética do artista, por ter sido bastante usado, e porque a visão amarelada era uma condição real, experimentada por Van Gogh ao longo dos anos, em decorrência das doenças de que sofria e dos medicamentos prescritos a ele.

Assim como os girassóis, os lírios foram marcantes nos quadros do artista, que, além do gosto pessoal por essa flor, usava-a como modo de aperfeiçoar a estética japonesa. E há, ainda, a importância simbólica dos lírios e da cor azul, respectivamente associados à morte/vida e ao desejo de tranquilidade. Por essas razões, inúmeras telas foram agrupadas no período que ficou conhecido como a fase azul da obra de Van Gogh.

Com base nos exemplos apresentados neste texto, não se pode negar que, de muitas maneiras, a exposição Van Gogh & impressionistas usou a tecnologia digital para aproximar o público da obra e da vida do pintor holandês. No entanto, para um espectador que conheceu e amou a cultura analógica, as projeções das imagens, embora belíssimas, soaram falsas e menos intensas do que os quadros físicos, nos quais podemos perceber a textura da tinta, resultante das pinceladas vigorosas e perfeitamente desordenadas de seu criador. 


Texto originalmente publicado no blog Interartes, em 2023: VAN GOGH & IMPRESSIONISTAS: UM QUADRO VALE MAIS QUE MIL PROJEÇÕES

REFERÊNCIAS:

MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005.

WUNENBURGER, J.-J. Filosofia delle immagini. Torino: Giulio Einaudi, 1999.

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