Por que J.R.R. Tolkien não gostava de “As Crônicas de Nárnia”?

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J. R. R. Tolkien (autor de O Hobbit e O Senhor dos Anéis) era um grande amigo de C. S. Lewis (autor de As Crônicas de Nárnia). Os dois se reuniam em bares ou em casa para discutir sobre seus escritos. C. S. Lewis sempre lia os manuscritos de Tolkien, e vice versa. Lewis era completamente apaixonado por O Hobbit e admirava muito o mundo fantástico que Tolkien criou (A Terra-média e tudo o que a envolve). O pequeno problema, é que essa admiração não era recíproca, porque é inegável o fato de que Tolkien não gostou de nenhuma das obras de C. S. Lewis.

C.S. Lewis se inspirou em vários nomes que aparecem em O Silmarillion, de Tolkien. Entretanto, ele se inspirar em algumas criações de Tolkien não parece ter sido um problema, mas sim o fato de que a obra de C.S. Lewis era muito religiosa. Há várias cartas dos autores em relação a isso, eis abaixo a opinião de Tolkien sobre Nárnia:

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É triste que “Nárnia” e toda essa parte da obra de C.S.L. deva permanecer fora do alcance de minha simpatia, tanto quanto a minha obra estava fora da dele.

Estou feliz que você tenha descoberto Nárnia, mas já que você perguntou se eu gostei receio que a resposta é Não. Eu não gosto de “alegoria”, e muito menos alegoria religiosa desse tipo. Mas essa é uma diferença de gosto que ambos reconhecemos e não interferiu em nossa amizade. (Carta 265)

Apesar desse comentário, Tolkien não queria que isso interferisse na amizade deles, tanto que ele indicou uma ilustradora para o livro (já que C.S. Lewis não era tão bom em ilustrar quanto Tolkien) e também recomendava que sua sobrinha lesse As Crônicas de Nárnia, mas de fato, o autor detestava alegorias de qualquer tipo e ele deixa isso muito claro no prefácio da segunda edição de O Senhor dos Anéis. Segundo Tolkien, livros alegóricos se restringem a dominação do autor, deixando margem para muitas interpretações dos leitores (nem sempre corretas).

George Sayer, um amigo dos dois autores que também frequentava o pub Eagle and Child, em Oxford (que era onde eles costumavam se reunir), deixou algumas considerações sobre o comentário de Tolkien a Lewis:

[Lewis] ficou machucado, espantado, de desanimado quando Tolkien disse que achou que o livro era quase inútil, que parecia um amontoado de mitologias não relacionadas. Tendo em vista que Aslam, os faunos, a Feiticeira Branca, Pai Natal, as ninfas e o Sr. E e a Sra. Beaver tem origens mitológicas ou imaginativas bem distintas, Tolkien penso que era um erro terrível colocá-los juntos em Nárnia, um único país imaginativo. O efeito foi incongruente e, para ele, doloroso. Mas Jack (apelido de Lewis) argumentou que eles existiam felizes juntos em nossas mentes na vida real. Tolkien respondeu: “Não em meu, ou pelo menos não ao mesmo tempo”.

Tolkien nunca mudou seu ponto de vista. Ele detestava tão fortemente o amontoado de figuras de várias mitologias nos livros infantis de Jack, que ele logo desistiu de continuar lendo. Ele também achava que foi escrito de forma descuidada e superficial. Sua condenação foi tão severa que há a suspeita de que ele invejava a velocidade com que Jack escrevia e comparou seu próprio método trabalhoso de composição. (Sayer, George. Jack: C.S. Lewis and His Times. p. 189)

A mistura de mitologias não deveria ser um problema para Tolkien, afinal, na Terra-média muitas raças vivem juntas também. O problema, é que, segundo Tolkien, Lewis colocou os elementos da mitologia cristã de modo muito óbvio. Tolkien era católico e grande conhecedor da bíblia, talvez por isso tenha desaprovado a escolha de Lewis. Walter Hooper, que foi secretário de C.S. Lewis um ano antes da morte dele, tornou-se um grande protetor das obras e da biografia do autor. Ele falou um pouco sobre esse desgosto de Tolkien:

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O Professor Tolkien uma vez me disse que achava os elementos cristão nas histórias Narnianas muito “óbvios”. Mas eu acho que isso é devido ao fato de que ele não apenas conhecia a Bíblia melhor que a maioria de nós, mas começou a entender até onde Lewis estava “chegando”. Julgando pelo que eu escutei, apenas cerca de metade dos leitores de Lewis achavam que Aslan significa Cristo – e que metade isso são igualmente crianças e adultos. (Hooper, Walter. Narnia: The Author, the Critics, and the Tale. p. 110)

Por fim, Humphrey Carpenter explica claramente porque Tolkien não gostava do mundo Nárnia.

Tolkien foi, por sua própria admissão, um homem de simpatias limitadas. Faltava-lhe o desejo habitual de Lewis para estar entusiasmado com o trabalho de um amigo, simplesmente porque ele era um amigo. Ele julgou histórias, especialmente histórias nesta veia, por padrões severos. Ele não gostava de obras de imaginação que foram escritas às pressoas, insconsistentes em seus detalhes, e nem sempre eram totalmente convincente em sua evocação de um “mundo secundário”. Esta foi uma das razões por que tinha levado os últimos onze anos para escrever O Senhor dos Anéis, que ainda não tinha terminado no momento em que Lewis começou a escrever O Leão. Cada ponta solta, cada detalhe da história – a cronologia, a geografia, mesmo a meteorologia da Terra-média 0 tinha que ser coerente e plausível, de modo que o leitor (como Tolkien desejou) tomasse o livro em um sentido como história.

O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa afronta contra todas essas noções. Tinha sido escrito muito às pressas, e esta pressa parecia sugerir que Lewis não estava levando o negócio da “sub-criação” com o que Tolkien considerava uma seriedade adequada. Houve inconsistências e pontas soltas na história, enquanto que além das demandas imediatas da trama a tarefa de fazer Nárnia parecer “real” não pareceu interessar Lewis. Além disso, a história emprestada tão indiscriminadamente a partir de outras mitologias e narrativas (faunos, ninfas, Papai Noel, animais falantes, qualquer coisa que parecia útil para a trama) que, para Tolkien a suspensão da descrença, o entrar em um mundo secundário, era simplesmente impossível. (Carpenter, Humphrey. The Inklings, p. 223-224).

 

Então, pode-se concluir que Tolkien não gostou da criação de Lewis por uma série de razões. Talvez pelo tempo investido e pelo resultado superficial e pouco explicativo, a mistura exagerada de seres de contos de fadas com mitologia cristã. Tendo em vista que Tolkien era bastante descritivo em suas obras, primava pelos detalhes e investia muito tempo nisso, ele provavelmente deve ter achado que a dedicação de Lewis, em comparação com a sua, era muito fraca. É difícil dizer se Tolkien tinha inveja da rapidez de Lewis, porque o foco de Tolkien nunca foi vender suas obras, e sim escrevê-las para seus familiares. Lewis, entretanto, mal escrevia e já entrava em contato com as editoras. O que importa é que, mesmo que Tolkien não tenha gostado da obra e ter dito isso, os autores não perderam a amizade, ainda que a crítica de Tolkien não tenha sido construtiva.

Quem já leu um pouco de Tolkien e As Crônicas de Nárnia, já pode perceber que a crítica de Tolkien é verdadeira, mas para mim, enquanto leitora, acho que a obra de C.S. Lewis é tão genial e incrível quanto a de Tolkien (por mais que eu goste muito mais de Tolkien). E você, o que acha?

 

Trechos retirados do site Tolkien Brasil. (http://tolkienbrasil.com/biografia/a-opiniao-de-tolkien-sobre-as-cronicas-de-narnia-de-c-s-lewis/)

 

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2 thoughts on “Por que J.R.R. Tolkien não gostava de “As Crônicas de Nárnia”?

  1. Muito bom esse artigo! Lewis era um crítico literário e Tolkien um filólogo. Vê-se que a conversa entre eles era de gente grande, que conhecia o assunto profundamente. Isso significa que as divergências que eles tinham sobre como contar histórias não era acidental. Eles realmente pensavam diferente em certas questões, especialmente na concepção de se a história deveria ou não “transmitir uma mensagem”. Lewis acreditava que sim, Tolkien acreditava que não. Eu respeito a forma de pensar dos dois. E dou graças a Deus porque essa discordância enriqueceu o gênero fantasia, de modo a permitir que as duas formas de contar histórias são válidos.

  2. Muito bom seu texto.

    Terminei minha leitura de Nárnia há pouco, e devo admitir que concordo com Tolkien. Claro, eu havia criado uma expectativa em torno de Nárnia, considerando talvez as comparações com a obra do professor Tolkien, que talvez sejam inevitáveis, mas não deveriam ocorrer da forma como geralmente ocorrem. Acredito que C.S.Lewis tenha, como ele mesmo afirmou em seu ensaio sobre “como criar histórias para crianças”, utilizado imagens que ele captou, e ajustado elas, preenchendo as lacunas, criando assim os elos da história. Muitas dessas imagens, ao se juntarem na mente de C.S.Lewis formaram boas ideias, mas que ao meu ver, ao passarem pelo processo ao qual o autor se dá crédito, do processo inventivo de amarrar a história com a argumentação e os elos que a deixam coesa, se perdem e deixam o leitor, ao menos o leitor um pouco mais crítico, sem o devido gosto pela leitura de sua obra.

    C.S.Lewis, como Tolkien afirmava, parece escrever as pressas muitas vezes, e sem remorso algum estampa isso em suas páginas. São incontáveis as vezes que se utiliza de recursos como “a história é muito longa para contar”, “não me recordo agora”, “não ouso contar” apenas para ir adiante em sua história. Uma dessas histórias que ele afirmava ser já esquecida em Nárnia, a conquista das Ilhas Solitárias, é depois recontada em uma frase “o rei derrotou um dragão, e anexou as Ilhas à Nárnia”. Essa história supostamente estava esquecida e era muito longa para ser contada. Ela não constava nos livros de história sobre Nárnia, que ele cita que Caspian, ou outros membros da realeza liam quando crianças? Tais recursos, se fossem utilizados com maior parcimônia talvez não incomodassem tanto a leitura, mas claramente observamos que isso não era utilizado como um recurso para aguçar a imaginação da criança, e sim como para se livrar rapidamente de uma coisa que deveria estar, na maioria das vezes, em seus contos, que são as riquezas de detalhes. A narrativa de Lewis é sempre apressada demais. Para dar a volta em um penhasco ele narra “muito se passou, mas depois de duas horas conseguiram.” Para narrar a luta de Caspian e seu tio, oferece a narrativa aos presentes, que comentam entre si “o que está havendo? Não consigo enxergar.. sim, Caspian lhe acertou um soco.” A luta de Edmundo com a Feiticeira Branca simplesmente não é narrada no livro, quando os demais chegam lá ele já está caído e ela morta, e algum dos animais fala que ele venceu. C.S.Lewis não tinha recursos narrativos básicos para um autor que se propunha a criar um mundo. Minha outra grande decepção por sinal, foi ler sobre a criação de Nárnia. Algumas grandes ideias estão ali, e eu estava imerso na leitura, quando Aslam enfim diz que o cocheiro, que veio até ali por acidente, seria o rei. Por mais que o leão conhecesse o âmago daquela pessoa, imagina-se que em uma história onde reis e rainhas têm o destaque que em Nárnia possuem, ao menos que fossem demostrados algo como coragem, honra, ou algo assim. O primeiro rei de Nárnia fora escolhido pois ele estava no lugar errado e na hora errada. Já sabia que a criação de Nárnia não seria narrada como a criação da Terra Média, mas mesmo assim aguardava mais. Após isso, incontáveis eventos não narrados, como já citei, coisa que se imagina em um filme, jamais em um livro, eventos aleatórios demais e sem consequências em praticamente nenhum momento. Acredito ser sim um livro bom para as crianças, que se guarde com afeto após termos nos tornado adultos e leitoras mais ávidos por uma riqueza de detalhes maior, mas acredito que o livro não cumpre com a premissa defendida pelo próprio autor, de que um bom livro infantil deve também agradar os adultos. Nárnia não tem o nível de detalhamento mínimo que julgo ser necessário para agradar um leitor mais atento, mas não também não quero desmerecer a obra por isso, afinal talvez eu esteja muito mal acostumado às obras mais detalhadas de Tolkien. Porém vejo um detalhamento maior por exemplo em Harry Potter, apesar de, para meu gosto pessoal, também não ser um livro atrativo. Enfim, Nárnia não deve ser comparada à Terra Média, isso seria injusto com o próprio C.S.Lewis, mas talvez pela proximidade dos autores e, guardadas as devidas gigantescas proporções, o conteúdo de suas obras, essa comparação seja inevitável.

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