Bergson e o Tempo (1)

Heloísa Gusmão

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Heloísa Gusmão
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Bergson e o Tempo (1) 1
A Persistência da Memória, Salvador Dali (1931)
“Os sistemas filosóficos não são talhados na medida da realidade em que vivemos.” (Henri Bergson)

Convido o Leitor a preparar sua bebida preferida, sua trilha sonora lofi, seu lugar mais confortável da casa e passar um pouco de seu precioso tempo comigo, pois seremos guiados, em três postagens, a uma meditação bergsoniana sobre o tempo. Na de hoje, veremos como Bergson se opõe ao modo tradicional de pensar. Na parte II, trarei alguns problemas inerentes a essa oposição. Na parte III enunciarei o “paradoxo da Medusa” e (alerta de spoiler!) chamarei ajuda de um poeta para tentar solucionar nossos problemas, pois a poesia sempre nos salva!

Parte I – A CONCEITUALIZAÇÃO ESPACIAL DE TEMPO
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BERGSON, H. O Pensamento e o Movente. Martins Fontes. São Paulo. 2006

“O que mais faltou à filosofia foi a precisão”. É com nada menos que esse soco na boca do estômago que o Leitor iniciará a leitura da coletânea de conferências de Bergson que levam o título de “O Pensamento e o Movente”. Bergson abre sua meditação afirmando que há um desajuste dos sistemas filosóficos em relação ao que nós apreendemos da realidade. E ele relata, em seguida, a experiência de testemunhar, desde a juventude, a paralisia e engano que os sistemas de pensamento causam sobre tudo o que de real, vivo e experienciável quisera ele que fosse apreendido. “É que um verdadeiro sistema é um conjunto de concepções tão abstratas e, por conseguinte, tão vastas, que nele caberia todo o possível, e mesmo o impossível, ao lado do real”.

A crítica de Bergson à filosofia conceitual (ou seja, a essa forma conceitualista de se inclinar, sistêmica e intelectualmente, sobre o mundo) é que, ao fazermos abstrações filosóficas em busca de uma essência da realidade, o que perderemos será justamente o real, pois sua “vida” e temporalidade, o mais das vezes aspectos considerados meramente acidentais cuja abstração não implicaria prejuízos, são a própria realidade que pretendíamos apreender. Oposto ao abstracionismo, Bergson relata sua busca pelo ideal de precisão tal como ele cria alcançado na explicação “científica”. Acreditava, o jovem Bergson, que tal cientificidade pudesse encontrar seu lugar na mecânica de Spencer (crença que ele mesmo depois abandona, entretanto). Tal ideal buscado se opunha ao chamado ideal da exatidão, defendido pelo método matemático e tomado por empréstimo pela Metafísica. Em resumo, o ideal de exatidão é o modo de pensar que, passando por cima das particularidades dos indivíduos, abstrai deles as semelhanças a fim de agrupá-los em conceitos, gêneros ou conjuntos para alcançar aquilo que seria a essência das coisas.

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O conceito de “cavalidade” exclui todos os aspectos reais dos cavalos em particular que conhecemos. Não há cavalidade no mundo, há este e aquele cavalos singulares. (Imagem: Pinterest)

É amplo o escopo das filosofias que se comportam assim e, por certo, arriscaríamos afirmar que Bergson se opõe a toda a tradição filosófica ocidental e se assemelha a correntes místicas marginais ao corpus filosófico tradicional. Na doutrina aristotélico-tomista, por exemplo, as definições, explicitações conceituais das essências, são dadas pela adição da diferença específica ao gênero próximo. Mas Aristóteles e Tomás de Aquino se diferenciam muito de inúmeros outros filósofos, por exemplo, Kant e os demais modernos, que Bergson com eles agrupa como alvo de sua crítica. Que teriam todos eles em comum?

Para todos esses sistemas, inclusive a mecânica evolucionista de Spencer, o tempo não é pensado a partir de sua particularidade e eficácia, ou seja, como um movimento adjacente de produção do real. Ele é pensado apenas por analogia ao espaço. No sistema newton-kantiano, que é o modelo paradigmático visado na crítica de Bergson, o tempo se torna uma forma pela qual os fatos que constituem a experiência e a existência do mundo são configurados no sujeito. No capítulo II do “Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência”, Bergson mostra que a abstração implica em um segundo problema que desqualifica todo o pensamento matematizante, a saber, a justaposição:

“Suponhamos que todos os carneiros do rebanho são idênticos entre si; diferem pelo menos em virtude do lugar que ocupam no espaço; caso contrário, não formariam um rebanho. Mas deixemos de lado os cinquenta carneiros para deles retermos apenas a ideia. Ou os compreendemos todos sob a mesma imagem e, por consequência, torna—se necessário justapô-los num espaço ideal, ou repetimos cinquenta vezes, de seguida, a imagem de um deles, e então parece que a série, mais do que no espaço, se situa na duração. E, contudo, não é nada disso. Se representar um a um, isoladamente, cada um dos carneiros do rebanho, lidarei sempre apenas só com um carneiro. Para que o número vá aumentando à medida que avanço, é necessário que retenha as imagens sucessivas e as justaponha a cada uma das novas unidades de que evoco a ideia: ora, é no espaço que semelhante justaposição se opera, e não na pura duração”. [1]

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No exemplo dado, o problema da progressão numérica se baseia no fato de que a consideração do indivíduo adicionado a uma dada operação de sucessão, para que seja justaposto a outros na operação, dele é necessário abstrair de tudo o que lhe é particular. Tal operação necessariamente cristaliza o tempo, ou seja, considera-o como numa sucessão espacial divisível em unidades fixas (t¹, t², t³…). “Sabíamos perfeitamente, desde os nossos anos de colégio, que a duração é medida pela trajetória de um móvel e que o tempo matemático é uma linha”. Assim, podemos definir que a filosofia conceitual, oposta ao projeto bergsoniano, é aquela que assume como modus operandi o caráter de abstração e justaposição no pensar. Se o tempo é passagem, mobilidade, movimento, ao representá-lo como uma trajetória linear percorrida por um corpo no espaço, exclui-se exatamente aquilo que é sua característica essencial.

Para explicar exatamente o que é este modo de apreender o tempo do qual Bergson quer se afastar, ele nos oferece uma analogia que se consagrou como a marca de seu pensamento e que, portanto, não poderíamos deixar citar aqui. No Capítulo IV d“A Evolução Criadora”, chamado “O mecanismo Cinematográfico do Pensamento e a Ilusão Mecanicista”, Bergon afirma que “o mecanismo de nosso conhecimento vulgar é cinematográfico”. No fotograma, símbolo da realidade, temos uma fita com várias imagens, anteriormente dadas e justapostas espacialmente, às quais o aparelho cinematógrafo, símbolo de nossas categorias kantianas espaço-temporais, imprime e projeta o movimento e, assim, elas não nos aparecem como no fotograma, mas em movimento.

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The horse in motion, Eadweard Muybridge (1878)

A filosofia conceitual é um cinematógrafo: pensamos o tempo como um modo de apresentação de fatos para nós que, apresentado em velocidade maior ou menor, em nada seria alterado. O tempo, no entanto, apresenta-se não como o efeito produzido pelo cinematógrafo sobre imagens t¹, t², t³… mas sim, para usar um exemplo bem atual, semelhante ao processo causado num cinema 3D de alta resolução, cuja perfeição, vivacidade e efetividade do vídeo digital, ao ser produzido por milhares de pixels praticamente impassíveis de cristalização frame by frame pela nossa percepção, faz-nos esquecer do antigo modelo de filme com imagens grosseiramente justapostas e nos leva a prestar atenção na mobilidade, na transição, imaginando que o futuro não está previamente dado, mas que é produzido concomitante à própria constituição do movimento…

(Na parte II, porém, veremos os desafios que Bergson encontra ao negar essa forma cristalizante do espírito de se dirigir ao mundo. Não percam!)

[1] BERGSON, Da Multiplicidade dos Estados de Consciência, in Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência. Edições 70. p.58

4 comentários em “Bergson e o Tempo (1)”

  1. Puxa, Helô:
    Fui, nessa leitura, acompanhado pelas árias de óperas, na voz de Cecília Bartoli e chimarrão.
    Funcionou, mas tive que ler seu texto impresso, sublinhando, anotando.
    Lembrei-me de meu único Bergson que me ganhou por inteiro: “O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade”.
    Fique daqui do meu canto quaresmal (e de isolamento horizontal), pensando em que poeta(s) enquadraria aqui em busca do “Paradoxo da Medusa”… tenho minhas hipóteses, mas não ouso aventar nada em público.
    Abraço do Beto.

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