A complexidade de criar mundos fictícios e se tornar um Deus

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Há alguns meses atrás li Contos Inacabados, uma obra organizada por Christopher Tolkien, com textos e contos de seu pai, J.R.R. Tolkien, que ainda não haviam sido publicados. A maioria dos contos que Tolkien escreveu sobre a Terra-média foram reunidos e publicados em O Silmarillion, mas ainda assim, alguns ficaram de fora, principalmente por não estarem terminados. Como Tolkien é o pai da ficção fantástica, é claro que os fãs queriam ter acesso a todo e qualquer texto dele, por isso, Christopher os comentou e disponibilizou em Contos Inacabados.

Enfim, o que quero abordar hoje é algo que me chamou muito a atenção durante a leitura (e enquanto escritora também): o fato de que, quando você cria uma história e, sobretudo na fantasia, um mundo completamente novo, você se torna o Deus daquele universo.

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A ideia de Deus, enquanto criador de tudo, pode ser aplicada aos escritores de fantasia que criam mundos e realidades diferentes da nossa, como a Terra-média. Porém, a maior questão surge quando se percebe a magnitude desse poder divino sobre o texto literário.

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Lide com J.R.R. Tolkien deus!

Já dizia Tio Ben, do Homem-Aranha, “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”, e essa frase se encaixa também para os escritores, pois uma vez que são criadores, são poderosos e se tornam responsáveis por aquilo que criam.

Para Tolkien, a problemática estava em ser muito famoso. Com a publicação da trilogia de O Senhor dos Anéis, os leitores e fãs ficaram alucinados com a Terra-média, e queriam saber tudo sobre ela:

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“Agora não tenho muita certeza de que seja realmente boa a tendência de tratar tudo isto como uma espécie de vasto jogo – certamente não para mim, que considero esse tipo de coisa de uma sedução fatal. O fato de tantos clamarem por simples ‘informações’, ou ‘tradições’, é, suponho, um tributo ao curioso efeito que têm as histórias, quando se baseiam em elaborações muito detalhadas da geografia, cronologia e língua.

Em uma carta no ano seguinte, ele escreveu:

‘…enquanto muitos como você pedem mapas, outros desejam indicações geológicas e não lugares, muitos querem gramáticas, fonologia e espécimes élficos, alguns querem métricas e prosódias… Os músicos querem melodias, e notação musical; os arqueólogos querem cerâmicas e metalurgia; os botânicos querem uma descrição mais precisa do mallorn, de elanor, nipbredil, alfirin, mallos e symbelmynë; os historiadores querem mais detalhes sobre a estrutura social e política de Gondor; pesquisadores em geral querem informações sobre os Carroceiros, o Harad, as origens dos anões, os Homens Mortos, os Beornings, e os dois magos faltantes (de um total de cinco).'” (Contos Inacabados, p. 13)

Com essa citação, percebe-se que as pessoas queriam detalhes muito específicos da Terra-média e a única pessoa que poderia saber essas respostas era Tolkien, o Deus criador daquele mundo.

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Google lança uma espécie de Google Earth da Terra Média. Leia em https://bit.ly/36uNmTy

As tradições e as histórias dos povos criados por Tolkien também são extremamente intrigantes e, com a publicação de O Silmarillion, ele tentou contar a história de grande parte desses povos e dos personagens mais importantes, mas ainda assim, os leitores (me incluo nessa) não se sentem satisfeitos e querem sempre saber mais e mais:

“Versões divergentes, de fato, nem sempre precisam ser tratadas apenas com o fim de estabelecer a prioridade da composição; e meu pai, como ‘autor’ ou ‘inventor’, nesses casos nem sempre pode ser diferenciado do “registrador” de antigas tradições transmitidas em diversas formas entre diversos povos por longas eras (quando Frodo encontrou Galadriel em Lórien, mais de sessenta séculos se haviam passado desde que ela viera para o leste, atravessando as Montanhas Azuis, vinda da destruição de Beleriand). ‘A respeito dela contam-se duas histórias, embora somente aqueles Sábios, que agora se foram, pudessem dizer qual é a veradeira.” (Contos Inacabados, p. 24)

Com isso, pude concluir que quando um escritor se torna uma espécie de Deus e criador de mundos (o que ocorre quase todas as vezes em que se escreve e publica um livro), ele se torna poderoso e responsável por saber TUDO sobre esse universo criado. Quando o leitor entra em contato com esses textos incríveis, acontece como Christopher descreveu: “é uma sedução fatal”, principalmente pelo fato de que o escritor é um Deus com forma física, ele existe ou existiu fisicamente e se pode (ou se podia, na época) fazer perguntas e ele. Portanto, se você for criar um mundo e colocá-lo em palavras, pense bem na responsabilidade e na complexidade disso, afinal, você terá de responder aos curiosos em relação à cada detalhe de sua criação.


Falar de Deus é pouco (rs). Já ouviu falar na deusa carioca Lucila Nogueira? Leia agora edição especial da Revista Recorte Lírico:
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