Entre o hoje e o amanhã: o tempo
Certamente você já ouviu falar que agora todos temos tempo para recuperar achados e perdidos. Será?
É lindo! E dizem que tem o incrível poder de, depois de passado, resolver todas as questões por mais difíceis que sejam. Não é comprovado, mas algumas vezes funciona. O tempo, não sem motivo, constitui um dos elementos essenciais das narrativas desde a antiguidade. Tanto que há gênero textual que mantém com ele relação estreita, e é voltado basicamente para o cotidiano presente: a crônica. Filha de seu tempo gerador, chega a fazer menos sentido se deslocada do momento em que foi produzida. É de consumo imediato, rápido, quente e, como as gerações presentes, se alimenta do hoje.
Alimenta-se assim como Cronos, figura mitológica representativa do tempo, alimentava-se de seus filhos. A crônica, filha de Cronos, assim como Zeus, não foi devorada. Ela se nutre do despercebido e do agora, brincando de iluminar aquilo que não está sendo visto e adora o meio do caminho, como pedra, em um entrelugar delicioso de explorar.
Acredito que, mesmo a partir dela, abordar o tema do tempo nos dias de hoje não seja tarefa tão fácil. A correria, a leitura nas conduções, o trabalho de segunda a segunda, tudo substituído por horas de trabalho, entretenimento e aprendizado de segunda a segunda diante das telas. Inevitavelmente, até estamos nas ruas, mas não se veem mais pessoas com livros e apostiladas misturando-se aos braços alheios nos metrôs, trens e ônibus. Quase não há mais quem diga: “Hoje não. Estou sem tempo”.
Mas a verdade é que estamos sim, sem tempo. As atividades agora é que são realizadas de outras formas, exigindo menos circulação nossa, mas com mais exposição de nossa parte. Cada vez mais vale o instantâneo, o ao vivo, o automático.
As leituras saíram dos vagões e corredores, mas permanecem superficiais. Em contrapartida, as vozes estão cada vez mais audíveis. Falamos, produzimos, opinamos, sem tempo para a releitura (ou ao menos para uma primeira leitura atenta) e para a reescrita. A exigência das redes é de conteúdo entregue todos os dias, na maioria das vezes sem revisão nem refeitura. Seguimos, sem sequer sabermos se, aquilo sobre o que opinamos é verdadeiro, confiável ou simplesmente pertinente.
A literatura então chega às enxurradas e sem catalogação. O leitor não comporta tudo, e sem seleção criteriosa, passa a vista sobre todo o conteúdo que lhe chama a atenção hoje e enquanto dá.
O autor maquina e vira máquina. Dilui-se. Escreve tudo e sobre tudo, aspirando a um espaço nessa praia lotada que cabe a nós e não nos pertence. Os críticos somos todos. Também de tudo e sobre tudo. Para a reflexão, confirmação e principalmente lapidação, estamos sem tempo, irmão.
Nessa saga, estamos nos deixando e jazendo no hoje, sem preocupação com a posteridade e com aquilo que deve permanecer como legado. Literatura é legado e criar, assim como saber, demanda tempo, esforço, exercício. Aliás, as palavras saber e sabor são irmãs. Do latim, “sapere” significa aquilo que tem sabor, que tem gosto.
Assim, é possível deduzir que estamos passando pelos saberes tão apressadamente que não estamos aproveitando o seu sabor. A arte automática e de micro-ondas não nos permite sentar à mesa e saborear junto às gerações futuras tudo aquilo que deve e merece permanecer. Estamos devorando nossos textos e nossos sucessores e não é no bom sentido.
Quem disse que o mundo parou? O trem segue viagem em tempo recorde e sem parada prevista em nenhuma estação. Esperamos com fé os momentos futuros, em que possamos voltar ao passado e ler nas conduções, construir o pensamento crítico, refletir, digerir e principalmente, para gosto dos antigos parnasianos, remover os andaimes para que a arte, divorciada do artifício, permaneça e se perpetue bela e bem preparada para quem chega depois e de longe. Haverá futuro. Que seu sabor seja doce.
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Oi Charlene, nada mais autentico nos dias atuais que dizer não. É necessário valorizar o tédio e a pausa. Aliás, só pra ilustrar, ouvi de um físico italiano um dia desses que num relógio parado o tempo passa menos que em um relógio em movimento. É difícil entender física quântica, mas se não me enganei na interpretação, a lentidão faz a vida passar mais vagarosamente; aquela ideia que afirma que quem vive mais devagar tem a sensação de ter mais tempo agora finalmente tem comprovação científica. Faltava a comprovação poética, felizmente sua crônica nos trouxe.
Olá, querido. De fato é isso mesmo. Estamos passando pela vida e pela arte sem desfrutá-las como realmente importa. Quem vive devagar tem mais tempo e aprecia melhor a paisagem. Um grande beijo. Gratidão.